sexta-feira, 13 de junho de 2014

Falta de espaço para lixo atômico põe usinas de Angra em risco

A usina nuclear Angra 2, em Angra dos Reis, corre o risco de ser desligada em 2017 em razão da saturação dos depósitos de rejeitos radioativos, segundo uma avaliação da própria Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) — responsável por fiscalizar o setor — remetida ao Tribunal de Contas da União (TCU). O mesmo deve ocorrer com a usina Angra 1 em 2018 ou 2019. E Angra 3, um empreendimento ainda em construção, pode deixar de entrar em operação por conta da crítica situação de armazenamento dos rejeitos.



Uma auditoria do TCU no sistema que guarda o lixo atômico descobriu o iminente esgotamento dos depósitos de resíduos de baixa e média radioatividade e das piscinas que recolhem o combustível usado, de alta radioatividade, decorrente da geração de energia. O mais grave é que a construção do novo depósito e da nova piscina está praticamente na estaca zero, um prenúncio da paralisia forçada do sistema.

O pente-fino dos auditores transcorreu sob sigilo, prática comum quando se trata de assuntos relacionados à política nuclear e aos órgãos federais envolvidos, a Cnen e a Eletrobras Eletronuclear. No último dia 30, quando a auditoria foi submetida à análise em plenário, o ministro relator, André Luís de Carvalho, derrubou o sigilo, o que levou à transferência do processo da sessão secreta para a aberta. O relatório foi aprovado, com a definição de um prazo de 90 dias para que os órgãos responsáveis definam as providências.

A situação mais crítica é a das piscinas para o destino final do combustível nuclear irradiado nas usinas. A de Angra 2 se esgota em 2018 e a de Angra 1, em 2020. A Eletronuclear precisará construir uma unidade de armazenamento complementar, o que ainda não teve início, como concluiu o TCU. “Caso a unidade não esteja licenciada e comissionada até 2018, possivelmente a geração elétrica das usinas estará comprometida, uma vez que não poderão operar sem que exista a possibilidade de armazenamento de seus combustíveis irradiados”, afirmam os auditores.

Os mesmos auditores reproduzem uma tabela com a taxa de ocupação dos depósitos que abrigam rejeitos de baixa e média radioatividade. Um deles estará totalmente ocupado neste ano. A área de caixas não terá mais espaço em 2015. E, em 2018, um depósito com 2,3 mil tambores de lixo radioativo atingirá a capacidade máxima. Em média, os depósitos conseguirão abrigar os rejeitos até 2020. Depois disso, a Cnen e a Eletronuclear precisarão efetivar uma solução. Os materiais de baixa radioatividade são papéis, plásticos, roupas e ferramentas usados nas usinas. Os de média, filtros e resinas.

A informação sobre um tipo de material colocado no depósito interno de Angra 2 despertou preocupação nos técnicos que conduziram o pente-fino. A Coordenação de Rejeitos e de Transporte de Materiais Radioativos e Nucleares (Corej) da Cnen apontou a existência no espaço de “80 embalados de alto nível de radiação, representando 17,39% do total”. A Eletronuclear, estatal responsável pelas usinas, chegou a afirmar que, na verdade, “existem 552 embalados de alto nível de radiação no CGR (Centro de Gerenciamento de Rejeitos)”. Depois, no curso da auditoria, a Cnen sustentou não existir esse tipo de material nas dependências das usinas.

O assunto é tão controverso que, em resposta aos questionamentos do GLOBO, a Cnen disse ter havido um “equívoco de classificação nos dados repassados ao TCU”. “Buscaremos esclarecer junto ao tribunal. A Cnen tem conhecimento de todos os rejeitos radioativos estocados nas usinas nucleares e afirma que não há rejeitos de alto nível de radiação no local”, citou o órgão. A Eletronuclear também negou a existência de “embalados de rejeitos de alta atividade”: “Todos os embalados nos depósitos são de baixa e média atividade”.

Um dos motivos para o TCU decidir fazer a auditoria, além dos riscos existentes numa área tão sensível, foi o valor do dinheiro público a ser gasto com os rejeitos radioativos: mais de R$ 1 bilhão. O transporte e a armazenagem dos resíduos a serem transferidos custarão R$ 226 milhões. A nova piscina está orçada em R$ 577 milhões. E o depósito, a ser construído numa cidade brasileira que se disponha a abrigar o lixo, consumirá mais R$ 261 milhões.

O Repositório de Rejeitos de Baixo e Médio Nível deveria atingir 45% do cronograma físico das obras em 2015, conforme meta da Cnen, o que não se concretizará. Até agora, não se escolheu nem a cidade que abrigará os rejeitos, mediante benefícios como royalties. Quatro fatores são considerados críticos pelo TCU para a construção do depósito: a escolha do local; o licenciamento ambiental e nuclear; a contratação de terceiros; e a destinação de recursos no Orçamento da União.

A orientação do governo federal foi para a Cnen selecionar terras de propriedade da União. Uma área chegou a ser escolhida, mas o termo de cessão não foi assinado, conforme a auditoria do TCU. “O processo de seleção do local é bastante complexo e sensível à aceitação pública”, cita o relatório. A Cnen, em razão da reação esperada por parte dos moradores das cidades previamente escolhidas, mantém o mistério sobre a futura sede do depósito.

Em 2012, a 1ª Vara Federal de Angra determinou que a União incluísse no orçamento recursos para a construção do novo depósito. A Cnen, conforme a mesma sentença, deveria apresentar o local do depósito em um ano. O órgão recorreu contra a decisão, e os efeitos da sentença estão suspensos. Uma das condicionantes para a concessão da licença ambiental a Angra 3 estabelece a necessidade de se resolver o problema dos rejeitos de Angra 1 e 2. Por isso, os auditores do TCU entendem que a usina pode ter o início do funcionamento adiado por conta do acúmulo de resíduos.

A auditoria constatou ainda que nenhum dos depósitos intermediários de rejeitos radioativos no Brasil está “devidamente licenciado”. “Não há como garantir que estejam cumprindo os requisitos e padrões de segurança recomendados pela AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica)”, diz André de Carvalho. Municípios que abrigam rejeitos, como Angra e Rio, não estão recebendo as compensações financeiras, o que só estaria ocorrendo com Abadia de Goiás, destino do lixo radioativo resultante do acidente com o césio 137 em Goiânia, em 1987. Diante da falta de estratégias expressas em lei ou norma sobre o gerenciamento de rejeitos, o TCU determinou que se adotem providências para a tramitação de um projeto sobre licenciamento de depósitos.


(O Globo)