domingo, 27 de julho de 2014

Vida indigna em endereços insalubres

Basta abrir a geladeira novinha, comprada a crédito, do aposentado Francisco Couto, de 81 anos, para ver salsichas e ovos na primeira prateleira. O eletrodoméstico se destaca no ambiente inóspito, sob uma grande pedra, no alto do Morro do Vidigal, onde mora há mais de 20 anos. Após enfrentar duas pneumonias, Chico da Pedra - apelido que ganhou na favela - tem esperanças de um dia sair dali. Ele garante que a sua residência não foi uma das 67.557.424 milhões visitadas pelos servidores do IBGE para o censo de 2010. Como de maneira geral, casa é uma construção destinada à habitação, a moradia improvisada do idoso, que mais lembra uma caverna, bem que poderia entrar nas estatísticas. Tem luz e água, mas falta saneamento básico.


- Aqui é muito frio no inverno e quente no verão. Tem muito rato, assim como cobra - conta Chico da Pedra, que mora ali desde que ficou viúvo pela terceira vez. - A casa anterior era da mulher. Os filhos ficaram com ela. Só me restou a pedra mesmo - recorda o morador, que mata o tempo ouvindo músicas no rádio.

Estudos feitos em 2011 e 2012, pela Fundação João Pinheiro - entidade do governo do estado de Minas Gerais que atua na produção de indicadores estatísticos em todo o país - mostram que o déficit habitacional no Estado do Rio chega a 409.544. Nesse número, estão incluídas 13.964 moradias precárias, como a de Chico da Pedra. As demais são de pessoas que moram de aluguel ou com parentes, por exemplo. O Rio é o terceiro na lista dos estados onde há maior falta de domicílios no Brasil. Segundo o Ministério das Cidades, desde 2009, o programa Minha Casa, Minha Vida do governo federal entregou 26.076 unidades habitacionais no estado para famílias com renda mensal de até R$ 1.600, consideradas de baixa renda.

No início do ano, Chico caiu de uma altura de quase dois metros quando varria as folhas da pedra que serve de teto. Como mora sozinho, ele gritou por socorro até que um morador ouviu o chamado e chamou os bombeiros. Em abril, deixou o Hospital Municipal Miguel Couto com 13 pinos na perna direita, sendo dez de ferro e três de platina. Mas a maior dificuldade foi voltar à casa de pedra. Sem ter para onde ir, ele contou com a ajuda dos vizinhos para chegar até a moradia.

- Não posso ficar trancado em casa. Ninguém aguenta. Desço para o asfalto, sozinho, duas vezes por semana para apanhar remédios na farmácia e comer num bar aqui perto - conta ele, que ganhou uma muleta da igreja para facilitar a locomoção.

O caminho até chegar à casa de pedra de Chico é longo, cheio de curvas, de escadas e de pedras com limo. Por causa da perna, ele leva 40 minutos do asfalto aos becos e vielas que levam à mata, uma via-crúcis. Mais jovem, ele ganhava a vida como pintor, o que o deixou com as pernas fortes de tanto subir e descer escadas, explica ele. Hoje, com os R$ 724 de INSS, ele compra os remédios para as dores e a pressão. Para comer, vive de doações que recebe como "benzedor", tirando os quebrantos, o mal-olhado de cima dos outros.

- É com as minhas rezas que eu compro minha carne. Os dois cobertores foram doação da Igreja Católica. Mas eu tenho celular e geladeira, porque comprei com o carnê de prestações. Agora, para comprar a casa, fica difícil - lamenta ele.

Ana Paula Barreto, de 36 anos, também faz parte das estatísticas dos sem casa. Ela, o marido e três filhos moram num cômodo de três metros quadrados, construídos à beira do valão que deságua no Canal do Cunha, no Morro do Timbau, na Maré.

(O Globo)