terça-feira, 19 de agosto de 2014

Mais de um terço dos brasileiros tem serviço precário de água

Com os passos limitados pela recuperação de uma pneumonia, a auxiliar de serviços gerais Vanessa Martins, de 37 anos, abre a porta de casa e caminha devagar pelo quintal carregando um balde. Ela empurra com dificuldade a tampa da caixa d’água que tem ali mesmo, no chão, quase cheia com a água que conseguiu naquele dia ligando uma mangueira à torneira do banheiro da vizinha, que tem um poço artesiano. Ela volta para a cozinha e começa a tira água do balde com um pote de margarina para lavar a louça do almoço deixada pelos quatro filhos. Ela não tem certeza da qualidade dessa água, mas, como é a única disponível, usa para beber, cozinhar, tomar banho. A cada necessidade, repete o ritual. Pelo menos dez vezes por dia, calcula.


O cotidiano de Vanessa parece com aquele já bem conhecido das comunidades castigadas pela seca no semiárido nordestino. Só que ela vive no Parque Muísa, bairro de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, que fica a 30 quilômetros do Centro do Rio, a segunda capital mais rica do país. Na casa de Vanessa não há mais uma torneira sequer. O objeto se tornou inútil porque não chega água da rede geral há mais de uma década. Mesmo assim, um hidrômetro está lá, na porta da casa, como um enfeite. Por causa dele, as estatísticas oficiais contam a casa dela entre os 50 milhões de domicílios brasileiros, 93% do total, com acesso a água encanada em áreas urbanas. Na vida real, ela não pode contar com um dos serviços públicos mais básicos.

— Estou doente, e a falta d’água me prejudica muito. Tenho que sair na friagem de noite para pegar água até para usar o banheiro. Isso me aborrece e me deixa muito cansada, não posso fazer esforço. Todo mundo precisa de água, é o mínimo. Mas ainda tenho sorte. Se não fosse a vizinha me dar água, eu não teria uma gota sequer — diz.

O acesso à água encanada avançou no Brasil nos últimos anos, chegando perto da universalização, mas a expansão dos sistemas não foi acompanhada de um serviço de qualidade. Dados do Sistema Nacional de Informações de Saneamento (SNIS) e do Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), publicado no final do ano passado pelo Ministério das Cidades com metas para a universalização do saneamento básico, mostram que 34% da população têm acesso a redes de abastecimento, mas não recebem água regularmente, enfrentando paralisações ou interrupções no abastecimento pelo menos uma vez por mês.

Segundo o SNIS, cujas informações mais recentes são de 2012, em um ano, foram registradas mais de 90 mil interrupções no fornecimento de água em todo o país, que atingiram 96 milhões de pessoas. Foram 27.376 paralisações dos sistemas de água por razões operacionais e outros 64.373 cortes não programados. A soma da duração dos períodos sem água enfrentados por brasileiros de todas as regiões chegou à impressionante marca de 778.700 horas só em 2012.

A seca prolongada no Sudeste, que baixou o nível da reserva do sistema Cantareira em São Paulo e ameaça o abastecimento da maior cidade do país, colocou o abastecimento de água na pauta das eleições em meio à insatisfação crescente dos brasileiros com a qualidade dos serviços públicos. O governador Geraldo Alckmin (PSDB), candidato à reeleição, é acusado pelos rivais de ter negligenciado investimentos no setor. No Rio, o governador Luiz Fernando Pezão (PMDB) também busca a reeleição sob cobranças parecidas diante do problema crônico de falta d’água na Baixada Fluminense. No entanto, esse problema não é só das duas maiores regiões metropolitanas do país.

Segundo um levantamento da Agência Nacional de Águas (ANA), mais de três mil cidades brasileiras, 55% do total, correm o risco de não conseguir manter o abastecimento de água a partir de 2015. Isso por falta de investimentos para ampliar a capacidade de tratamento de água ou para identificar novos mananciais para ampliar a captação e acompanhar o aumento da demanda com o crescimento populacional.

O trabalho realizado em 2011, que está em fase de atualização pelos técnicos da ANA, apontou a necessidade de investimentos de R$ 22 bilhões no setor para garantir a segurança hídrica desses municípios. Dinheiro não falta. Desde 2007, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) já reservou R$ 80 bilhões em verbas federais para obras de saneamento, mas quase metade desses recursos ficou parada nos cofres do Ministério das Cidades por falta de projetos.

Sem conseguir aumentar a oferta de água para atender a toda a população, e cada vez mais vulneráveis a fenômenos climáticos, as distribuidoras de água recorrem às manobras que provocam a intermitência no abastecimento. É preciso cortar a água de alguns para manter a de outros. Quase sempre, o corte é feito nas periferias. Enquanto isso, 37% de toda a água tratada no Brasil se perdem em vazamentos e ligações clandestinas antes de chegar às torneiras dos consumidores que pagam as contas, mas não têm um serviço satisfatório. No Amapá, por exemplo, esse índice ultrapassa 70%.

O cenário pode ser ainda pior considerando que os dados do SNIS são fornecidos pelas próprias companhias de abastecimento de água. Diferentemente de serviços como telecomunicações e energia elétrica, a água não tem uma regulação federal, com padrões de qualidade. A ANA só regula o manejo de mananciais.

— A legislação diz que o saneamento é atribuição dos municípios, a quem cabe a regulação. O resultado é uma bagunça generalizada. A regulação é fundamental em qualquer ramo da atividade de prestação de serviços — diz Dante Ragazzi Pauli, presidente da Associação Brasileira de Saneamento, que reúne profissionais do setor.

O Ministério das Cidades informou que espera a melhoria dos indicadores com a conclusão das obras financiadas pelo PAC, mas atribui a baixa execução do orçamento às dificuldades técnicas das cidades. A intermitência no abastecimento de água é, para o ministério, fruto da falta de modernização dos sistemas frente ao crescimento da demanda. Sobre a veracidade dos dados do SNIS, o ministério admite que não tem mecanismos de fiscalização, tarefa das agências regionais. Ainda de acordo com o Ministério das Cidades, o índice anual médio de perdas de água vem caindo desde 2006, quando ficou em 43,8%.


(O Globo)