quinta-feira, 18 de setembro de 2014

A outra margem do Rio: Os contrastes na recuperação da Região Serrana

À beira do riacho, um galpão abandonado, com as paredes sujas de barro e, do lado de dentro, geladeira, bicicleta e até carro soterrados. O cenário é de uma tragédia que aconteceu três anos e oito meses atrás. Mas que permanece intacto, em Córrego D’Antas, na cidade de Nova Friburgo. Na quarta reportagem da série “A outra margem do Rio”, a viagem pelo estado chega à Região Serrana, onde as chuvas da madrugada de 11 para 12 de janeiro de 2011 deixaram mais de 900 mortos e afetaram milhares de fluminenses. Às vésperas da primeira eleição estadual após a tragédia, as marcas da enxurrada continuam aparentes. Alguns lugares, praticamente recuperados. Outros, distantes do que já foram um dia. Embora em todos resitam as dores deixadas pela catástrofe, em histórias de vida para seguiram novos rumos desde então.



Num vale às margens da RJ-130 (a Teresópolis-Friburgo), o Córrego D’Antas hoje parece um bairro fantasma, com dezenas de casas vazias, várias do jeito que a enchente e os deslizamentos de terra de 2011 deixaram. A obra de uma das pontes que foram arrastadas na tempestade mal começaram. Muitos imóveis foram condenados. Mas outros tantos voltaram a ser ocupados. Um deles, a casa da embaladeira Magaly Padilha de Castro, de 45 anos, na que a água havia passado do teto naquela madrugada de janeiro. A família e ela escaparam ilesos no terceiro andar de um vizinho. Mas o que viu lá de cima nunca saiu de sua memória.

- Não me esqueço das pessoas gritando socorro - diz Magaly, que voltou para o Córrego D’Antas meses depois. - Sem receber aluguel social, reformamos nossa casa e retornamos. Viver aqui, para mim, é horrível. Qualquer chuva, fico apavorada. Sem falar que sumiu tudo, não tem mais gente para conversar. À noite, principalmente, é um deserto. Não passa ninguém. Parece que a vida parou lá atrás - continua ela.

À solidão e ao medo, juntaram-se outros inconvenientes. Os imóveis abandonados viraram abrigo de ratos, cobras e aranhas, que invadem também o quintal de Magaly. A vontade dela de é ir embora. Para isso, precisaria vender a casa. Mas, prevê a embaladeira, não apareceria comprador.

- Estou completamente desiludida. Neste lugar, meu filho, de 10 anos, a todo momento lembra de um coleguinha dele que foi encontrado morto - conta.

Apenas em Córrego D’Antas, foram 33 mortos, dos 426 em Friburgo, a cidade com mais vítimas na tragédia. Só no bairro, segundo o Instituto Estadual do Ambiente (Inea), 970 famílias foram cadastradas para serem realocadas de áreas de risco, das quais, até agora, 537 negociaram com o estado para receber indenizações ou a compra assistida de imóveis, além de 54 terem recebido unidades habitacionais. Quem ficou, se pergunta por que ocorreram obras em outras áreas mais centrais da cidade, enquanto ali, muito pouco mudou.

- Só tiraram a lama das ruas e fizeram uma obra no leito do rio. Nada mais. No Centro, sim, foi quase tudo recuperado - diz a aposentada Maria das Dores Thomaz, de 70 anos, que diariamente é obrigada a atravessar uma pinguela de madeira improvisada, o caminho mais rápido para chegar a sua casa após a enchente.

Como afirma Maria das Dores, no Centro de Friburgo a realidade é outra. A turística Praça do Suspiro, cujas imagens da destruição foram um dos símbolos das chuvas, está recuperada. Obras de contenção de encostas ficaram prontas, a Igreja de Santo Antônio foi reconstruída e o famoso teleférico, depois de mais de três anos fechado, reabriu parcialmente em julho.
 

Logo no primeiro dia, afirma o empresário Rodolfo Acri, de 63 anos, dono do empreendimento, a atração recebeu cerca de 1.350 visitantes. Desde então, o movimento tem sido de mais de mil pessoas nos fins de semana. Não foi fácil, contudo, se reerguer. Para reabrir o negócio, Rodolfo conta que vendeu muito do que tinha. Desde 2011, ele estima prejuízos de mais de R$ 8 milhões. E, atualmente, deve cerca de R$ 2 milhões.

- Uma das consequências da enxurrada é a dívida dos empresários. Mas não podíamos simplesmente ser derrotados - diz Rodolfo, que ainda não reabriu um segundo trecho do teleférico nem o hotel que funcionava no alto do morro. - Seria importante que houvesse mais ajuda financeira a quem sempre investiu na região.

O também empresário Gilberto Sader, de 63 anos, foi outro que teve a vida revirada quase quatro anos atrás. Da tradicional loja de doces nas imediações da Praça do Suspiro, perdeu tudo. Teve de recomeçar do zero. O lugar foi tomado pela lama. Mas, 40 dias depois, já reabria o negócio, que começou com seus pais, há 55 anos.

- Recebi cestas básicas, porque não tinha nem alimento. Eu e vários empresários. Quando reabri a loja, tinha pouquíssima mercadoria. Foram dois anos com faturamento quase 80% abaixo do que tinha antes - conta. - Foi a maior tragédia climática do Brasil. E a recuperação de Nova Friburgo tem muito do empenho do povo local. Ou chorávamos todos juntos ou levantávamos as mangas. Sou muito orgulhoso de ter retomado isso aqui. A Praça do Suspiro, que foi o marco da destruição, agora é o da reconstrução - diz ele.

Além de Friburgo, Teresópolis, Petrópolis, Bom Jardim, São José do Vale do Rio Preto e Sumidouro também foram atingidas na Serra. Em todas, houve mortes. Em Petrópolis, no Vale do Cuiabá, outros dos lugares mais afetados, o morador José Quintella diz que a recuperação avançou. No entanto, está no meio do caminho. Recentemente, afirma ele, obras pararam, como a dragagem do Rio Cuiabá. E a maior parte das intervenções de contenção de encostas e reflorestamento sequer começou.

— Disseram que seria tudo retomado depois das eleições. Sinceramente, não acredito. Fora isso, a vida vai voltando ao normal. Pousadas e o haras que existiam no Vale reabriram, e os empregos voltaram. As perdas de conhecidos e parentes, porém, que são irreparáveis. Eu mesmo perdi cinco primos e muitos amigos. Isso não tem volta - diz ele, que é presidente da associação de moradores local.

Ele afirma que, no Vale do Cuiabá, muitos voltaram para suas casas. Mas a moradia ainda é uma dúvida para outros, que ainda negociam com o estado. Para amenizar o problema, lembra, por enquanto foram construídas 74 unidades habitacionais na região, 24 pela iniciativa privada e 50 pelo governo do estado, que até agora, segundo a Secretaria estadual de Obras, entregou 1.337 unidades habitacionais para vítimas da enxurrada na Serra, 1.277 delas em Nova Friburgo.

A retomada pós-tragédia, no entanto, não é a única demanda na região. Entre os dez municípios com piores Índices de Desenvolvimento Humano do Rio, três são da Região Serrana: Duas Barras (0,659), São Sebastião do Alto (0,646) e Sumidouro (0,611), esse último com o mais baixo IDH do estado. As três são cidades pequenas. Sumidouro, com apenas 15.099 habitantes, a maior delas, mas também com problemas de déficit habitacional, como vítimas das chuvas vivendo num hospital inacabado.

Macuco, a cidade menos populosa do estado (5.380 habitantes) e também com menor número de eleitores (6.560), aliás, também fica na Serra. No município, o tempo parece passar lentamente. Mas é onde a produção de laticínios numa cooperativa fundada em 1927 ajuda a movimentar a economia de 32 cidades do entorno, com mais de 1.200 cooperados em fazendas de municípios como Santa Maria Madalena e São Sebastião do Alto. Todos os dias chegam à fábrica, no Centro de Macuco, de 130 mil a 140 mil litros de leite, para uma produção de 7 mil caixinhas de leite longa vida por hora, além de queijos, requeijões e outros produtos.

É ali também onde trabalham muitos moradores de municípios da Serra como Cordeiro e Cantagalo, e alguns até de outros estados, como o tecnólogo de laticínios Thiago Valente, de 29 anos. De Ubá, em Minas Gerais, ele estudou na mineira Rio Pomba antes de se mudar para Macuco. Mas a chegada dele revela outra face de Macuco. Embora há décadas tenha a produção de leite como uma de suas principais atividades, a mão de obra mais especializada, na maioria das vezes, vem de longe.

- Fiquei sabendo que precisavam de minha especialização aqui e vim. A capacitação é toda feita fora da cidade - diz Thiago.
 

Sem cursos técnicos nem faculdade no município, o jovem Felipe Barbosa da Silva, de 16 anos, cursa a formação em cabeleireiro em Nova Friburgo. São duas horas de ônibus até lá, para onde vai também quando quer frequentar o teatro ou o cinema. Sem muita opção de lazer e cultura em Macuco, ele reuniu amigos para formar um grupo de dança. Ensaiam no coreto da cidade, com os pés no chão e uma pequena caixinha de som. Reconhecem as dificuldades de viver num município tão pequeno. Mas não desistem de seus sonhos.

- Quero abrir o meu salão de beleza aqui em Macuco - diz Felipe.




(O Globo)