domingo, 16 de novembro de 2014

Estudo investiga novas linhagens de micobactérias causadoras de tuberculose

Conhecida antigamente como “peste cinzenta”, numa referência à cor pálida de seus portadores, a tuberculose está, quase sempre, associada a um passado já distante, em geral, ao período compreendido entre o final do século XIX e meados do século XX, quando dizimou milhões de indivíduos em todo o mundo, principalmente por consequência de infecção pulmonar grave. O compositor Noel Rosa e os escritores românticos Castro Alves e Álvares de Azevedo foram algumas de suas vítimas. Mas, ao contrário dessa convicção bastante difundida, a tuberculose permanece bem presente ainda hoje. De acordo com o Ministério da Saúde, são notificados, por ano, aproximadamente 70 mil novos casos no Brasil, dos quais, cerca de cinco mil evoluem para o óbito do paciente. No panorama mundial, a situação é ainda mais preocupante: anualmente surgem em torno de sete milhões de novas ocorrências, fatais em mais de um milhão deles.


De acordo com a bióloga Simone Crespo Morais Ribeiro, doutoranda do Programa de Pós-graduação do Centro de Biociências e Biotecnologia, da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), os dados mostram que, apesar dos avanços no controle da tuberculose, a doença está tão ativa quanto já esteve no passado. O surgimento de novas cepas, mais agressivas e resistentes a medicamentos, da micobactéria causadora da tuberculose – Mycobacterium tuberculosis (Mtb) –, parece ser um dos motivos que explicam esse cenário alarmante. Em sua pesquisa, orientada pela médica Elena Lassounskaia e desenvolvida com bolsa de doutorado da FAPERJ, ela investiga se há alguma relação entre as diferenças genéticas e as características biológicas de diferentes linhagens de micobactérias. “Entre elas, estudamos a família Beijing, conhecida por ter uma grande resistência a drogas. Originária da China, ela evoluiu em duas sublinhagens, a ancestral e a moderna, sendo que esta última tem se espalhado pelo mundo, incluindo países vizinhos ao Brasil, como o Peru”, diz a pesquisadora.

De acordo com a bióloga, o objetivo do estudo é descobrir se as características genéticas de cada uma dessas duas sublinhagens Beijing podem influenciar na agressividade das micobactérias e no caráter de indução de resposta imune no organismo hospedeiro. Nesse sentido, foram avaliadas, em testes de virulência in vitro e in vivo, cepas Beijing ancestrais e modernas, isoladas dos pacientes no Brasil, Moçambique e Rússia, – países descritos como áreas de dispersão secundária dessas cepas. Todos os testes foram comparados com a cepa laboratorial H37Rv, de virulência conhecida, usada como padrão de referência em pesquisas. “Nos resultados obtidos, já publicados em revistas científicas internacionais, observamos que as cepas da sublinhagem moderna não só apresentam maior capacidade de crescimento nas células do hospedeiro como também induzem formas mais agressivas de doença.”

Para chegar a essas conclusões, Simone relata o passo a passo da pesquisa: “Nos testes in vitro infectamos uma cultura de macrófagos – células de defesa – com uma determinada quantidade de micobactérias das diferentes cepas estudadas. Em seguida, avaliamos o crescimento desses antígenos e a taxa de mortalidade das células infectadas, fatores que indicam o padrão de virulência bacteriana, ou seja, o quanto ela é agressiva ao organismo do hospedeiro”, explica a pesquisadora. Ela esclarece que esse tipo de teste in vitro é útil para avaliar, rapidamente, as características do agente causador da doença. As informações obtidas poderiam ser um bom instrumento para os laboratórios de pesquisa e diagnóstico da tuberculose, que utilizados em conjunto com testes de susceptibilidade a drogas, trariam dados importantes para as estratégias epidemiológicas e do tratamento do paciente.

Para validar os resultados obtidos in vitro, as cepas em estudo foram inoculadas em grupos experimentais – neste caso, de camundongos – para avaliar a gravidade da doença causada por cada uma delas. Segundo a bióloga, a infecção dos animais foi realizada por meio de uma injeção na traqueia, com baixa dose de antígenos, já que esse protocolo simula a via de entrada de micobacteria através do trato respiratório, quando, mesmo em contato com poucas bactérias, pode haver a indução da tuberculose. Oito cepas de Mtb foram avaliadas, das quais três eram da sublinhagem Beijing ancestral, quatro da sublinhagem Beijing moderna e uma cepa da laboratorial H37Rv, usada como controle para comparar os dados obtidos. Simone explica que o objetivo dos testes in vivo foi quantificar a mortalidade dos animais provocada por cada cepa, o grau de comprometimento pulmonar e o crescimento de bactéria nos pulmões, além de caracterizar o padrão de resposta imune desenvolvido pelos hospedeiros.

Os resultados ratificam que o padrão genético das sublinhagens estudadas parece mesmo influenciar no grau de severidade da doença. “Os camundongos infectados com as cepas Beijing da sublinhagem moderna vieram a óbito mais rápido que animais infectados com cepas ancestrais”, afirma Simone. Ela conta que foi possível observar um maior crescimento micobacteriano nos pulmões daquele grupo de animais. “Microscopicamente, identificamos também uma extensa infecção pulmonar com grande morte celular e áreas com necrose, características clínicas que normalmente não estão observadas nos camundongos infectados pelas cepas menos agressivas. Isso revela que houve uma inflamação exacerbada, com intenso recrutamento das células de defesa ao pulmão que, ao contrário do que parece, intensifica ainda mais a lesão pulmonar e pode levar a insuficiência respiratória. Trocando em miúdos, significa que as bactérias mais agressivas crescem mais rápido que as células de defesa do pulmão, que acabam sendo destruídas. Com essa intensa morte celular, há um aumento na liberação de compostos químicos intracelulares, que sinalizam para o sistema imune sobre o aumento do perigo, o que provoca novos ciclos do recrutamento das células de defesa. Contudo, as micobactérias continuam vivas e infectam mais células, induzindo novos ciclos de destruição celular e ampliando áreas de inflamação e necrose, o que leva os animais a morte precoce”, confirma a pesquisadora, que acrescenta: “Diferentemente das cepas modernas, as cepas Beijing ancestrais foram menos agressivas. Essas micobactérias crescem no pulmão menos rápido e não induzem a morte das células de defesa em massa, o que ajuda a manter uma ativação equilibrada do sistema imune, resultando em controle de infecção.”

Uma boa notícia é que as cepas Beijing ainda são raras no Brasil e, na sua maioria, pertencem a sublinhagem ancestral, embora as pesquisadoras ressaltem que uma das cepas mais agressivas de todo o estudo, da sublinhagem moderna, tenha sido recolhida no Rio de Janeiro. As cepas altamente virulentas e resistentes a drogas apresentam uma associação que favorece sua disseminação e que, para Elena, tem um grande potencial para gerar uma epidemia. “Não é a toa que, na Rússia, líder do ranking mundial da tuberculose resistente a múltiplas drogas (TB-MDR), as cepas da família Beijing da sublinhagem moderna já correspondem à maior parte das notificações de tuberculose resistente por lá”, destaca a médica, que é natural da cidade de São Petersburgo, na Rússia, e há 20 anos trabalha na Uenf, onde coordena os estudos sobre a agressividade da micobactéria da tuberculose.

Ela acrescenta que, em 2012, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), apenas quanto à tuberculose resistente (TB-MDR), foram estimados mais de 400 mil casos em todo o mundo, dos quais 60% ocorreram na China, Índia e Rússia. A interrupção do uso dos antibióticos em doses adequadas para o tratamento é um dos fatores que explicam o aumento de cepas resistentes, como explica Elena. “O tratamento deve ser feito durante seis meses, sem interrupção, para garantir que a doença seja totalmente curada. Contudo, os sintomas da tuberculose desaparecem logo nas primeiras semanas e o paciente interrompe os medicamentos, sem saber que nesse período as drogas matam apenas as bactérias mais sensíveis. As mais resistentes permanecem no organismo e, como resultado, a doença pode voltar, sendo agora muito mais resistente ao tratamento”.

No Brasil, as cepas mais comuns são da família Latin American-Mediterranean, também chamada de LAM, e os casos de resistência às drogas são relativamente raros. A médica destaca que, nos últimos 17 anos, o Brasil conseguiu reduzir a taxa de incidência de tuberculose em 38,7% e a taxa de mortalidade em 33,6%. “Mas, nem por isso, podemos descansar, já que ainda ocupamos o 17º lugar entre os 22 países responsáveis por 80% do total de casos no mundo, e o número dos casos de tuberculose resistente está aumentando”, enfatiza Elena. “O isolamento e a caracterização de bactérias dos pacientes com tuberculose, bem como a identificação das cepas mais perigosas que circulam no nosso meio, é tarefa importante para o controle da tuberculose e desenvolvimento de novas vacinas e medicamentos para tratamento adaptados para cepas brasileiras.”

Como uma das doenças mais antigas de que se tem relatos na humanidade, há registros sobre a tuberculose datados de mais de 50 mil anos. A contaminação se dá por via aérea, bastando para isso o doente tossir, bocejar, espirrar, ou mesmo, cantar para que o ar ao seu redor fique contaminado. Pior é que as micobactérias conseguem viver até 24 horas suspensas no ar, antes de entrar no pulmão de algum desavisado. Logo, se pela história natural da doença, a tuberculose já conta com todos os pressupostos para continuar sendo uma “acompanhante fiel e longínqua” da humanidade, cabe aos pesquisadores e estudiosos buscar novos mecanismos e medicamentos para tentar pôr fim a essa relação milenar, que tanto mal faz aos humanos.

(FAPERJ)