quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

A rocha que mudará o mundo

Na primeira vez em que um representante da indústria do gás apareceu em suas terras no distrito de Bradford, norte da Pensilvânia, John Williams não fazia ideia do que se tratava. O desconhecido disse que queria arrendá-las para explorar uma jazida de gás. Pagava 170 dólares por hectare. Desconfiado, Williams não topou. Em 2006, quatro anos mais tarde, apareceu uma mulher que, em nome de outra empresa, fez uma oferta mais apetitosa: 400 dólares por hectare. Em 2007, com o mercado já em franca ebulição, o telefone de Williams chegava a tocar três vezes por semana com alguém fazendo uma proposta de arrendamento. Em 2008, finalmente ele cedeu. Arrendou por 5500 dólares o hectare, mais royalties, que, nos picos de produção, lhe rendem até 15 000 dólares por mês. Ele conta: “Tive problemas para receber quando a empresa original transferiu o arrendamento para outra. Mas, no geral, não posso reclamar. Estou feliz”.

John Williams, 55 anos, pai de cinco filhos, sabe que faz parte de uma corrida que está provocando uma revolução energética nos Estados Unidos — e no mundo. “Estudei o assunto, pesquisei bastante”, diz. “Por isso, não arrendei minhas terras para o primeiro que apareceu.” Seu vizinho cometeu esse erro: pegou míseros 12 dólares por hectare. O norte da Pensilvânia é uma região habituada à epopeia humana em busca de energia. Foi ali, em Titusville, que se perfurou o primeiro poço de petróleo, em 1859, dando a largada para a criação da moderna e poderosa indústria petrolífera. Agora, um século e meio depois, a Pensilvânia está, de novo, no epicentro de uma transformação radical da energia no mundo.

Debaixo de suas terras, há uma enorme placa de xisto, uma formação rochosa de milhões de anos que aprisiona, dentro dela, uma imensa reserva de gás — o chamado gás de xisto. A rocha subterrânea é colossal no tamanho e no potencial. Estende-se do estado de Nova York a Ohio, passando pela Pensilvânia e Virgínia Ocidental. Calcula-se que contenha uma das maiores reservas de gás do mundo, capaz de atender à demanda americana, no nível atual, por 100 anos. Numa coincidência espetacular, a Marcellus, como a formação rochosa foi batizada, está no miolo de um dos maiores mercados consumidores de energia do mundo — as áreas metropolitanas de Nova York, Filadélfia, Pittsburgh e Boston. Aubrey McClendon, um dos fundadores da Chesapeake Energy, companhia com mais de 10000 empregados, assim descreveu a reserva da Marcellus: “Só pode ser intervenção divina”.

Há décadas se sabe da existência da Marcellus e de seu potencial, mas extrair o gás da rocha exigia uma combinação de tecnologia e baixo custo, que só se materializou no início da década passada, quando se associou a perfuração horizontal com a técnica do fraturamento hidráulico (veja o quadro na pág. ao lado). Desde então, deu-se “uma das maiores corridas de prospecção da história moderna”, segundo Tom Wilber, autor de Underihe Surface (Debaixo da Superfície), que narra a busca pelo gás de xisto. O resultado é estonteante. Em 2000, o gás de xisto representava 1% da oferta de gás natural no mercado americano. Agora, já chega a 30%. A perfuração horizontal e o fraturamento hidráulico logo passaram a ser também aplicados para extrair petróleo da rocha. A produção na formação de Bakken. Na fronteira com o Canadá, já levou o estado de Dakota do Norte a superar o Alasca no ranking da produção petrolífera.

Há duas semanas, o boom de petróleo e gás de xisto dos Estados Unidos foi reconhecido no relatório divulgado pela Agência Internacional de Energia, em Paris. O documento diz que os Estados Unidos serão o maior produtor de petróleo do mundo em 2017, superando a Arábia Saudita e a Rússia, atuais líderes mundiais. Em 2030, estarão exportando mais petróleo do que importam e, cinco anos mais tarde, serão autossuficientes em energia. A AEE já acertou na mosca, mas também já anunciou enormes bobagens. É prudente não tomar suas projeções como destino. Mas, somando-se a exploração das jazidas de petróleo e gás de xisto, o incentivo às fontes de energia limpa (solar e eólica) e as medidas para fazer carros mais econômicos, os Estados Unidos estão vivendo uma abundância de combustíveis fósseis — e falar em autossuficiência deixou de ser aquele sonho distante que os americanos buscam desde o governo Richard Nixon, nos anos 70.

O impacto geopolítico da nova posição americana será tão potente que fica difícil antecipá-lo. Os Estados Unidos abandonarão sua aliança de ferro com a Arábia Saudita? A China, alçada à condição de grande compradora do mundo, se tornará o principal país interessado na estabilidade do Oriente Médio? A Europa se libertará da dependência do gás da Rússia? Especialistas de duas universidades americanas, Harvard e Rice, uniram esforços para antecipar o cenário mundial caso a produção de gás natural se mantenha em alta. No desenho mais otimista, a economia americana será altamente beneficiada e o gás natural farto e barato, poderá até provocar um boom na indústria manufatureira, que muitos já davam como morta. Os países do Oriente Médio e a Venezuela tendem a ser enfraquecidos, já que o gás natural pode substituir o petróleo nas usinas de energia elétrica e em alguns setores da indústria. A China, consumidora voraz, poderá usar a força da demanda por energia para estreitar laços com países produtores do norte da África e América Latina, sobretudo a Argentina, dona das maiores reservas de gás de xisto da região, à frente do Brasil. Além do boom americano, o Canadá descobriu petróleo nas suas areias betuminosas e o Brasil, como se sabe, tem o pré-sal. Tudo somado, as Américas podem virar um novo Oriente Médio em termos de petróleo e gás.

“O relacionamento da China e da Rússia era baseado em Marx e Lenin, mas agora é baseado em petróleo e gás”, diz o especialista Daniel Yergin, autor de um livraço sobre a saga do petróleo. A geopolítica da energia costuma premiar e punir com igual intensidade. No reordenamento que timidamente começa a se esboçar, os Estados Unidos têm tudo para ser o grande vencedor. A Rússia é uma forte candidata ao posto de grande perdedor. Desde que o alemão Willy Brandt e o soviético Leonid Brejnev fizeram um acordo nos anos 70, pelo qual os europeus receberiam gás dos russos, Moscou ocupa uma posição dominante no fornecimento de energia à Europa. Os negócios e a malha de gasodutos resistiram até ao colapso soviético, em 1991. Agora começam a ser ameaçados. A exploração do campo de Shtokman — um dos maiores do mundo, localizado no Ártico russo —já foi arquivada porque o principal comprador seriam os Estados Unidos, que agora têm gás dentro de casa. A russa Gazprom, a maior produtora de gás do planeta, sempre usou sua influência para selar contratos de longo prazo com a Europa indexando o preço do gás ao barril de petróleo. Talvez não tenha mais força para tanto. A Europa, afinal, poderá recorrer a outros fornecedores, até mesmo aos Estados Unidos.

O gás natural emite 60% menos gás carbônico que o carvão e 30% menos que o petróleo, mas os ecologistas não gostam do fraturamento hidráulico. Alegam que a solução de água, areia e produtos químicos injetada nos poços para fraturar a rocha pode contaminar a água e o ar. Também dizem que o fraturamento do xisto aumenta o risco de terremotos. Na França, o fraturamento hidráulico está proibido. Na Alemanha, está suspenso, enquanto o governo estuda uma legislação que pretende ser rigorosa. Nos Estados Unidos, os protestos são recorrentes, mas as autorizações, de modo geral, nunca deixaram de ser emitidas. A disputa para convencer a opinião pública chegou às telas. No ano passado, um documentário da FTBO, Gasland (Terra do Gás), demonizando o fraturamento hidráulico, concorreu ao Oscar, mas não ganhou. Agora, no fim do ano, estreia Promised Land (Terra Prometida), em que Matt Damon faz um funcionário de uma produtora de gás interessado em arrendar terras na Pensilvânia. As empresas petrolíferas já revidaram com seu filme, Truthland (Terra da Verdade), que está sendo exibido em centros comunitários.

As preocupações ambientais podem reduzir o ritmo da exploração do gás de xisto, mas dificilmente vão alterar uma realidade: o gás natural é o combustível do futuro. Levará tempo. A transição de uma fonte de energia para outra é, por definição, muito lenta. O próprio petróleo demorou quase um século para destronar o carvão da liderança mundial. Mas o gás tem futuro promissor como combustível dos automóveis. A frota americana de carros movidos a gás duplicou na segunda metade da década passada, mas ainda é ridiculamente pequena: 110000 veículos, ou 0,1% de todos os automóveis em circulação. No Brasil, há 1,7 milhão de carros a gás. Como é flexível, menos poluente, barato e farto, tudo sugere que, assim como o petróleo foi o combustível do século XX, o gás tem tudo para ser o combustível do século XXI — e isso mudará o mundo tal qual o conhecemos.

O Brasil possui a décima maior reserva de gás de xisto do mundo. Está é a conclusão do relatório “Reservas Mundiais de Gás de Xisto”, elaborado pela Agência Internacional de Energia (AIE), que indica a existência de reservas tecnicamente recuperáveis – não necessariamente viáveis economicamente – de 226 trilhões de pés cúbicos (tcf), cerca de 6 trilhões de m3.

O volume estimado é 17 vezes maior que o atual volume de reservas provadas de gás natural no Brasil, de aproximadamente 336 bilhões de m3 – dados do Ministério de Minas e Energia. De acordo com o relatório da AIE, as reservas de gás não convencional no Brasil estão concentradas na região Centro-Sul.

As reservas brasileiras estimadas estão atrás somente da China, EUA, Argentina – as três maiores reservas –, Argélia, Líbia, África do Sul, Austrália, México e Canadá. No total, o relatório avaliou 48 bacias de gás de xisto em 32 países, em todos os continentes. O estudo mostra que os recursos internacionais do gás de xisto são muito grandes, com uma previsão inicial de recursos tecnicamente recuperáveis de gás de xisto de 6.622 tcf

Ainda segundo a AIE, existem dois grupos de países onde o desenvolvimento do gás do xisto pode parecer mais atraente. O primeiro é composto por países atualmente muito dependentes de importações de gás natural e cujos recursos estimados de gás de xisto podem alterar significativamente o equilíbrio de seus respectivos mercados, como França, Turquia e Chile. O segundo grupo reúne os países onde a estimativa de recursos de gás de xisto é grande e já existe uma infraestrutura significativa para uso interno ou para exportação do produto. Caso do Brasil, EUA e Argentina, por exemplo.

Fonte: Energia Hoje, Veja