sábado, 4 de maio de 2013

Pesquisas oferecem abordagem diferenciada dos acidentes na construção civil

Devido à deficiência na inspeção e vigilância dos ambientes de trabalho, os operários da construção civil formam um grupo já tradicionalmente exposto a acidentes, muitas vezes, fatais. Em vez de apenas identificar o número de trabalhadores que se acidentam nos canteiros de obra, Raimunda Mangas, em sua pesquisa de mestrado na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp), uma unidade da Fiocruz, optou por uma abordagem diferenciada. A pesquisadora analisou as trajetórias de vida e trabalho de operários que sofreram acidentes fatais na construção civil do município do Rio de Janeiro, assim como as seqüelas desses acidentes para as famílias das vítimas. Raimunda constatou que os trabalhadores, pela necessidade de emprego, se submetiam a condições precárias de trabalho, muitas vezes, sem um contrato formal com a empresa. Quanto aos parentes, muitos permanecem com dúvidas sobre as verdadeiras causas do acidente e, além da dor da perda, enfrentam graves dificuldades financeiras.

Sob a orientação de Carlos Minayo Gomez, do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh) da Ensp, Raimunda buscou evidências de acidentes com morte em canteiros de obra. Por meio das Comunicações de Acidente de Trabalho (CATs), documentos que devem ser emitidos pela empresa, a pesquisadora identificou 25 casos de acidentes fatais entre 1997 e 2001.

No entanto, procurando em outras fontes, como registros de ocorrência policial, notícias publicadas na imprensa, relatórios sindicais, certidões de óbito, boletins de emergência de hospitais públicos e relatos de colegas de trabalho, Raimunda encontrou evidências de outras 49 mortes. "Não se pode basear a análise apenas nas CATs, já que elas só são emitidas para trabalhadores formais e há um universo enorme de vínculos informais na construção civil. Além disso, mesmo que o funcionário tenha a carteira assinada, não é raro a empresa se esquivar de comunicar a ocorrência do acidente", diz Minayo, que há cerca de cinco anos está à frente de uma linha de pesquisas sobre a precarização do trabalho na construção civil.

Nesse processo de precarização, a crescente terceirização do setor parece desempenhar um papel central. "Vêm se intensificando a prática da subcontratação e a tendência das empresas em reduzir o número de trabalhadores 'centrais', empregando, cada vez mais, como estratégia de redução de custos, uma força de trabalho facilmente dispensável em condições que intensificam sua vulnerabilidade. A terceirização do setor se estabelece por meio de uma extensa rede de serviços contratados, repassados das empresas principais para empreiteiras e destas para organizações freqüentemente irregulares", afirma Raimunda em sua dissertação de mestrado.


Raimunda acompanhou representantes do sindicato nas inspeções aos canteiros de obra onde ocorreram os acidentes. O grupo verificou que, em diversas ocasiões, a área do acidente não foi devidamente isolada e, por causa da descaracterização da cena, as investigações ficaram prejudicadas. A pesquisadora entrou em contato com os familiares das vítimas. Conseguiu 19 depoimentos de parentes. Os entrevistados demonstraram sofrimento e revolta. Muitos desconhecem seus direitos ou têm dificuldade para receber benefícios e indenizações. Além disso, a ausência do pai, muitas vezes, exige que os filhos abandonem os estudos e comecem a trabalhar para ajudar no sustento da família. Algumas mães, em meio às adversidades, temem que os filhos se envolvam com atividades ilegais.

Ainda hoje mais da metade dos trabalhadores empregados na construção civil provém da região Nordeste. A imensa maioria deles tem pouca escolaridade e recebe de dois a quatro salários mínimos. De acordo com o levantamento feito por Raimunda, mais de um quarto das vítimas de acidentes fatais era jovem, com idades entre 20 e 29 anos. As quedas foram as principais causas de morte. "O que se observa hoje é que os acidentes têm sido considerados fatalidade intrínseca ao trabalho nos canteiros de obra. O adoecer e o morrer se inserem no cotidiano dos trabalhadores como algo natural. Isso é um absurdo, até porque muitos acidentes poderiam ser evitados se medidas simples de segurança fossem adotadas", conclui Minayo.

Após sofrerem acidentes incapacitantes, os trabalhadores e suas famílias têm seu cotidiano totalmente afetado. Compreender as conseqüências sociais para as vítimas desses acidentes na construção civil foi o objetivo da pesquisa de mestrado de Rafael da Silveira Gomes, realizada na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp), da Fiocruz. Sob a orientação do professor Carlos Minayo Gomez, pesquisador do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh) da Ensp, Gomes constatou, além da problemática da crescente terceirização do setor, as adversidades que permeiam toda a trajetória de vida e trabalho dos acidentados. "É por conta da associação desses diversos fatores que se pode dizer que o acidente começa a ser produzido muito antes de sua ocorrência", revela Gomes. A seguir, a entrevista com o pesquisador.

Por que você escolheu o trabalho na construção civil como tema de pesquisa?
Gomes: Meu interesse inicial era estudar os acidentes de trabalho, mas ainda não tinha decidido uma área específica. A escolha da construção civil como tema da pesquisa de mestrado ocorreu após minha experiência no curso de especialização em saúde do trabalhador, também na Ensp. Tive contato com a pesquisa do professor Carlos Minayo Gomez intitulada Precarização do trabalho e seus impactos sobre a saúde, que tinha como um de seus focos a investigação dos trabalhadores terceirizados da construção civil. Após essa experiência no curso de especialização, resolvemos dar prosseguimento ao estudo deste setor que é historicamente marcado por altos índices de acidentes de trabalho.

O trabalho na construção civil passa por um processo de precarização?
Sim. Quando afirmamos que o setor passa por um processo de precarização - e é importante deixar claro que este processo não está ocorrendo apenas na construção civil -, estamos nos referindo à reestruturação das relações no mundo do trabalho decorrente das transformações políticas, econômicas e tecnológicas ocorridas nas últimas décadas. Estas mudanças provocaram a perda de conquistas dos trabalhadores, a diminuição dos salários, a flexibilização dos contratos de trabalho e o desamparo social.
Na construção civil, o aumento do número de trabalhadores terceirizados contribui para esse processo. A estratégia de terceirização vem sendo utilizada como uma forma de redução de custos, o que ocasiona algumas transformações nas relações trabalhistas - através de uma multiplicidade de vínculos empregatícios - e a deterioração das condições de trabalho.
Os desdobramentos desse aumento extensivo da terceirização na construção civil são preocupantes, pois isso se sobrepõe a um setor que já tinha péssimas condições de trabalho: os ambientes insalubres, a alta periculosidade das tarefas realizadas, os riscos negligenciados, a quase inexistência de políticas de segurança do trabalho e a utilização de mão-de-obra inexperiente.

Você entrevistou seis trabalhadores que sofreram acidentes incapacitantes. Por que escolheu essa metodologia?
O acidente incapacitante modifica brutalmente as histórias das pessoas: causa uma ruptura na trajetória destes sujeitos e deixa seqüelas físicas e psíquicas que serão carregadas pelo resto da vida. Além disso, ele não atinge apenas os acidentados, mas também suas famílias, que muitas vezes têm neles seu amparo financeiro. Assim, a opção por utilizar a história de vida como método de estudo baseou-se na necessidade de focar a análise sobre o acidente no relato do próprio acidentado.
Somente a partir dos relatos dos próprios sujeitos podemos contextualizar o acidente no fluxo de suas existências, e não como um acontecimento estático e instantâneo. Sob essa perspectiva, procuramos dar voz ao acidentado, para compreendermos o acidente também pelo seu ponto de vista, seu saber e sua experiência, tudo contextualizado em sua vida.
Partimos do pressuposto que as relações sociais mantidas no trabalho e fora dele, os sentimentos diante da profissão e a situação familiar, entre outros aspectos, interferem na produção do acidente tanto quanto as outras questões relativas ao ambiente de trabalho. E a entrevista com o trabalhador é instrumento primordial para termos acesso a estes dados.
O número de trabalhadores entrevistados não foi estabelecido a priori. Foi, na verdade, resultado da grande dificuldade de encontrá-los, apesar do grande número de acidentes incapacitantes ocorridos no setor.

O discurso dos entrevistados tem algo em comum? O quê?
O discurso tem vários pontos em comum. Aliás, a própria vida dos trabalhadores apresenta diversos pontos em comum. Dois sentimentos, a princípio contraditórios, atravessam todo o discurso. Apesar de toda a luta, característica da vida dos trabalhadores desde os primeiros anos de vida, está presente uma certa aceitação da realidade a que se submeteram e em que se encontram, uma certa impotência de quem sempre lutou e que, nessa tentativa de vencer, pagou um preço alto.

O que há de comum nas trajetórias de vida dos entrevistados?
Os entrevistados, em sua maioria, eram migrantes das mais pobres regiões do país. Eles ingressaram no mercado de trabalho ainda na infância devido às precárias condições financeiras de suas famílias. A migração surge, então, como uma possibilidade real de aumentar a renda e alcançar uma vida melhor. A construção civil absorve grande parte dessa mão-de-obra migrante, entre outros motivos, pela pouca exigência de qualificação. Esses trabalhadores se submeteram a condições adversas de trabalho, moradia e vida. A associação desses diversos fatores culmina no acidente.
Após o acidente, inicia-se uma outra fase em suas vidas: a do tratamento e da busca por seus direitos. Novamente, apesar de termos analisado histórias singulares, os relatos trazem muitas informações em comum, que revelam o desamparo social a que estes trabalhadores estão submetidos, fato presente na dificuldade em garantir seus direitos.

O que de mais significativo revelou o conteúdo das entrevistas?
Revelou que o acidente começa a ser produzido muito antes de sua ocorrência. As condições de trabalho e de vida destes sujeitos devem ser revistas, pois, caso contrário, essa indústria da produção de infortúnio vai se manter e outros trabalhadores com histórias similares irão continuar sofrendo.

Como os trabalhadores entendem o acidente?
Percebemos que há uma certa banalização do acidente. Eles relatam o acontecimento de outros episódios com eles mesmos ou com colegas como se fosse um evento natural ou rotineiro. Os acidentes, às vezes, eram tratados com muita naturalidade, o que demonstrava o caráter ordinário ou cotidiano destes eventos na realidade dos trabalhadores. Um deles, inclusive, nos relatou o seguinte: "Eu só tive uns dois ou três acidentes só. Mas coisa mesmo de quinze dias". É importante ressaltar que, quando falamos dessa banalização, aceitação ou resignação, entendemos esses sentimentos como produtos sócio-históricos, que são o resultado das trajetórias de vida, e não algo inerente aos sujeitos.
O fato de banalizar o evento não significa que eles não consigam analisar o acontecimento com clareza. Em alguns momentos, a análise dos acidentes apresenta uma clareza surpreendente, em que os entrevistados apontam diversos fatores que, se fossem evitados ou ao menos modificados, poderiam ter evitado o ocorrido. Mas os relatos estão imersos nessas contradições.

Quais os desdobramentos desses acidentes para os trabalhadores e suas famílias?
O acidente, em maior ou menor grau, sempre resulta em uma perda significativa na renda mensal dos trabalhadores. Mesmo os que continuam a receber integralmente o salário registrado na carteira de trabalho sofrem com as perdas referentes às horas extras, ao trabalho por produção e às demais formas de aumentar a produtividade propostas pelas empresas, que se traduziam em um aumento expressivo dos rendimentos. Perdas na renda atacam frontalmente a qualidade de vida. No caso dos trabalhadores informais, que, infelizmente, vêm crescendo numericamente no país, toda essa trajetória é agravada pela total desproteção social.
O acidente incapacitante impede que o trabalho, atividade que desempenhava um papel central na vida desses homens, muitas vezes, desde a infância, não mais ocupe este lugar. Esses homens, que construíram desde os primeiros anos de vida uma identidade de trabalhador e para os quais o trabalho sempre foi uma fonte de dignidade, são privados desse título, são expulsos do mundo laboral. São privados de uma atividade que, além de preencher uma grande parte de seu tempo, era um local privilegiado de socialização, onde se construíam relações de amizade.
O acidente atinge outras dimensões da vida desses trabalhadores, para os quais a maioria dos prazeres e diversões tem como fundamento essencial um corpo saudável. Corpo que foi profundamente atingido. A auto-estima é, assim, intensamente abalada. Os parentes acompanham todo esse sofrimento de perto e sofrem também conseqüências diretas, já que, na maioria das vezes, os acidentados são arrimos da família.


Fonte: Fernanda Marques, Fiocruz
Saiba mais: Cartilha SEBRAE