O Brasil será o primeiro país do hemisfério sul a adotar uma proposta mais avançada de tratamento da Aids. Para marcar o Dia Mundial de Combate à doença, o Ministério da Saúde informou no domingo que vai estender o uso de antirretrovirais a todas as pessoas com HIV, além de intensificar a realização de testes de infecção, oferecer um remédio 3 em 1 e iniciar um estudo para uma espécie de vacina. As medidas já são adotadas por países como Estados Unidos e Bélgica e, se de fato forem postas em prática, deixarão os brasileiros mais perto do controle da epidemia da doença.
O antigo protocolo de tratamento do Sistema Único de Saúde (SUS) não previa o uso de medicamentos no momento em que a pessoa contraía o vírus. Considerava que, embora um indivíduo estivesse infectado, os sintomas da Aids não se manifestariam de imediato. Assim sendo, os remédios só eram disponibilizados para o paciente que atingia uma taxa de 500 CD4 (as células de defesa do organismo) por milímetro cúbico de sangue, como ainda recomenda a Organização Mundial de Saúde (OMS).
A portaria publicada nesta segunda-feira no Diário Oficial determina, no entanto, que todos os adultos com HIV positivo recebam o tratamento, que, segundo o governo, estará disponível nos serviços de atendimento especializado e também nas Unidades de Pronto Atendimento.
— A partir de agora, assim que a pessoa for diagnosticada com o vírus, ela receberá o tratamento imediato na rede pública — disse, no domingo, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, durante o anúncio do novo protocolo no Rio.
— Isto lembra o papel que o Brasil teve nos anos 1990, sendo o primeiro do Sul a adotar o acesso ao tratamento livre e gratuito, num momento de forte resistência internacional — disse o médico Luiz Loures, secretário-geral assistente da ONU e vice-diretor geral do Programa de Aids das Nações Unidas (Unaids). — Na época, assumimos um papel de liderança mundial, e é por este caminho que estamos indo novamente
No domingo, a presidente Dilma Rousseff publicou no Twitter uma série de mensagens sobre a Aids. Num deles, afirmou que o governo está lançando uma “campanha para disseminar os testes gratuitos e rápidos sobre a presença do HIV”. Isto será feito por meio de um caminhão que funcionará como uma unidade de testagem móvel. O Rio de Janeiro será o primeiro estado a usar o veículo, que deverá realizar 1.700 testes por mês.
— Quem mais transmite o vírus não sabe que está infectado. Por isso, testar e diagnosticar é uma medida importante para diminuir a taxa de infecção. Isto que eles chamam de testagem móvel é um teste simples e rápido, cujo resultado sai em 20 minutos e é altamente confiável — explicou o médico e professor da UFRJ, Amilcar Tanuri, chefe do Laboratório de Virologia Molecular da universidade.
Estimativas indicam que, atualmente, cerca de 700 mil pessoas podem estar infectadas com o HIV, sendo que cerca de 150 mil delas desconhecem esta situação. Estudos demonstram que o uso precoce de antirretrovirais reduz em 96% a taxa de transmissão do vírus. Tanuri, no entanto, questiona se o SUS suportará o aumento da demanda:
— Serão 150 mil novos pacientes, e tem a questão da sobrecarga do SUS. Outra preocupação é o aumento do número de exames complementares para viabilizar a terapia. E o último ponto é a resistência do vírus ao antirretroviral, porque imagina um paciente infectado, mas sem sentir nada, ter que aderir ao tratamento. Se ele desistir, há a possibilidade de aumento da resistência, então o governo tem que trabalhar nisso.
Conhecido como 3 em 1, o medicamento oferecido pelo governo reúne em sua fórmula três remédios diferentes já ofertados separadamente no país. A vantagem é reduzir o número de comprimidos tomados diariamente e, até, incentivar a continuação do tratamento.
O gasto médio anual por indivíduo soropositivo gira em torno de US$ 3 mil. O aumento do número de pacientes ficaria por volta de US$ 450 mil (cerca de R$ 1 bilhão). O investimento federal no combate à epidemia de Aids e de outras doenças sexualmente transmissíveis foi de R$ 1,2 bilhão em 2013. O novo protocolo representará um aumento de 6% no investimento em prevenções antivírus HIV.
— Antecipar o tratamento não representa impacto no orçamento, pois economizamos em diagnóstico e remédios, já que passamos a fabricá-los no Brasil — defende o diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Fábio Mesquita.
O governo federal também vai iniciar um estudo chamado Profilaxia Pré-Exposição (Prep). A ideia é tentar prevenir a transmissão do vírus do HIV entre gays, profissionais do sexo, travestis, transexuais e pessoas que usam drogas. Para isso, a proposta consiste em fornecer antirretrovirais diariamente a pessoas que ainda não foram infectadas, mas que fazem parte de grupos de risco.
A Prep começará a ser testada no Rio Grande do Sul —região com maior incidência de soropositivos — no primeiro trimestre do ano que vem. O estudo levará um ano.
Segundo o governo, a prática já é usada hoje em dia em duas situações: em casos de risco de contaminação de profissionais de saúde e de relações sexuais em que ocorrem falhas nas medidas de prevenção.
— Há pesquisas mostrando que é possível bloquear a infecção com o uso do medicamento — diz o professor da UFRJ Amilcar Tanuri. — A taxa de proteção fica acima dos 95%. Seria um tipo de vacina clínica, mas não há condição de oferecê-la à população inteira, por isso é preciso focar em situações específicas.
Para o médico Luiz Loures, do Unaids, a Prep facilitaria o controle da incidência de HIV nas populações mais afetadas. Ele ressalta, no entanto, a necessidade de estabelecer uma política de proteção a essas pessoas.
— Sem uma política antidiscriminatória, isso não vai funcionar. A experiência brasileira vem abrir o debate sobre o acesso à profilaxia por estes grupos mais vulneráveis. Isso pode ser importante do ponto de vista internacional. O tratamento não vai ser a solução em países que criminalizam a relação do mesmo sexo, por exemplo — afirmou.
Loures estima que, em 15 anos, se as ações de controle e prevenção se mantiverem, poderá ser declarado o fim da epidemia de Aids no mundo — o que não significa erradicação da doença. Hoje, a taxa de detecção do vírus no Brasil tem se mantido estável, em torno de 20 casos de Aids a cada 100 mil habitantes, o que representa cerca de 39 mil casos novos da doença todos os anos.
(O Globo)