Palco de grandes batalhas urbanas, o Rio vem sendo cenário de mais um conflito. Porém, a guerra desta vez não está relacionada com os black blocs e a Polícia Militar, ou com os confrontos entre bandidos. A disputa em questão é silenciosa, desgarrada do noticiário. E acontece diariamente na cidade, de dia ou à noite, enquanto a fila do pão cresce, e o pôr do sol é aplaudido no Posto Nove. Trata-se da disputa que se dá no alto das árvores, envolvendo micos e pássaros. E, ao contrário do que se pode pensar, o assunto é sério.
Há algum tempo, apartamentos da cidade vêm ganhando novos moradores: pássaros (geralmente rolinhas, mas há relatos até de pica-paus) que fazem seus ninhos em vasos de plantas na sala de estar, em cima de xaxins da varanda, em prateleiras da área de serviço e até em cima de chuveiros. Uma das possíveis causas do fenômeno, de acordo com ornitólogos, são os micos.
Criaturas inegavelmente carismáticas, as espécies Callithrix jacchus e Callithrix penicillata — aqueles miquinhos de ar simpático, penugem branca no rosto e destreza impecável — são responsáveis por um desequilíbrio ambiental na fauna do Rio e, hoje, não são lá mais tão benquistos na cidade. Provenientes da Bahia, os símios pequeninos foram trazidos para a região Sudeste em meados da década de 1980 e daqui nunca mais saíram. Como aquela visita que se instala no sofá da sala e dali não levanta mais, o mico-estrela, como também é chamado, adaptou-se muito bem ao ambiente urbano carioca.
Com índices de reprodução de dar inveja aos coelhos e predadores em número muito inferior à sua população — como gaviões e serpentes —, os micos se alimentam de quase tudo, sem restrições: de restos de lixo a banana, passando por biscoitos industrializados e, para o sofrimento das aves, ovos de passarinhos.
— Esse é um fenômeno que vem acontecendo há algum tempo. Eles (os micos) atacam os ninhos e colocam muitas espécies de aves em ameaça. Elas ficam sufocadas — diz a ornitóloga Mariana Janiszewski. — Os ninhos dentro dos apartamentos podem estar ligado a dois fatores: a predação dos micos e a adaptação das aves à crescente urbanização. Mas ainda não há estudo que comprove isso. E os micos são muito espertos. Já as rolinhas, são bichos relativamente bobos...
Naturalizados cariocas até na malandragem, os micos costumam fazer a festa em domicílios da cidade. Deixou a janela aberta, já era. Mas, às vezes, nem é preciso. Morador do Cosme Velho, o designer Antonio Escorel, de 33 anos, conta que os miniprimatas já entraram até pelo basculante do banheiro. Agindo em bando, os invasores possuem um sofisticado esquema para surrupiar alimentos:
— Um fica na janela enquanto os outros pegam a comida. Outro dia os flagrei passando pão de fôrma de mão em mão até colocarem tudo do lado de fora — diz Escorel, observando, em seguida, o vasto paladar dos trombadinhas da floresta: — quanto mais industrializada a comida, melhor. Adoram barrinha de cereal, biscoito... pode ter cacho de banana do lado que eles não pegam.
A superpopulação dos saguis é tão prejudicial ao ecossistema da cidade que um projeto recente está sendo realizado pela área de Conservação de Fauna do Jardim Botânico: a castração de micos.
— Uma das maiores causas de perda de diversidade na fauna é a introdução de animais exóticos, como o mico — afirma a bióloga Gabriela Heliodoro, integrante do projeto do Jardim Botânico. — E além de serem de duas espécies diferentes que se reproduzem muito rapidamente, eles cruzam entre eles, o que é muito pior. A hibridização só atrapalha na catalogação, porque você não consegue identificar a espécie. Não dá para fazer a mesma coisa que fizeram com o mico-leão-de-cara-dourada, que está sendo catalogado e levado de volta para a Bahia. É impossível.
De acordo com Gabriela, os saguis se adaptaram tão bem ao Sudeste que há migrações sendo feitas para outros estados — coincidência ou não, em um apartamento de Itaparica, em Vila Velha, no Espírito Santo, há um caso de ninho feito em cima de um chuveiro.
As castrações, segundo a bióloga, começaram na semana passada, com dois machos e duas fêmeas, mas o projeto é de longo prazo:
— Precisamos observar como o grupo vai reagir, se vai ter algum tipo de alteração no comportamento... Acredito que os ninhos em apartamentos estejam ligados às podas e aos desmatamentos que vêm acontecendo no Rio. Estradas abertas, metrô, Rock in Rio, Transoeste... muita obra na cidade.
Morador da Ilha, o artista plástico Bruno Miguel tem, há seis meses, três ninhos de rolinhas em sua casa, dois no xaxim da varanda e um numa prateleira da área de serviço.
— De um ano para cá, percebi micos passando, o que não tinha. Além disso, teve uma poda de cerca de 10 árvores na minha rua. Tudo parece ligado.
Segundo o gerente de fauna do Instituto Estadual do Ambiente (Inea), Adilson Gil, é difícil avaliar se o surgimento dos ninhos está relacionado a uma redução de área vegetativa:
— Para cada empreendimento, há uma compensação cinco a seis vezes maior do que o que foi desmatado.
(O Globo)