quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Leishmaniose é registrada em 20 estados brasileiros

O agricultor José Ribamar Madeira de Albuquerque, de 52 anos, começou a sentir fraqueza e febre há seis meses. Percebia que os pés estavam inchando. Procurou o hospital da cidade onde mora, Miguel Alves, a 120 km ao norte da capital do Piauí, Teresina. Os médicos prescreveram medicamentos, mas os sintomas voltaram. Ele buscou outros hospitais públicos em Teresina, fez exames, mas não conseguia o diagnóstico sobre o que o afligia. Só depois de recorrer a um laboratório particular é que soube ser um dos quatro mil brasileiros que, a cada ano, contraem o tipo mais comum de leishmaniose, também chamada de calazar.

A leishmaniose, incluída entre as chamadas doenças negligenciadas - que prevalecem em condições de pobreza, contribuem para a manutenção da desigualdade e são ignoradas pelos grandes laboratórios farmacêuticos por falta de interesse comercial - é um problema de saúde pública no país e no mundo.

Segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS), chega a dois milhões os novos casos registrados no mundo, a cada ano, dos dois tipos da infecção - a visceral, mais comum e que tem se urbanizado, e a tegumentar, frequente em áreas silvestres. O Brasil responde por 90% dos casos de leishmaniose visceral notificados na América Latina. A doença vem se tornando emergente entre os portadores do HIV, segundo o último boletim da Secretaria Nacional em Vigilância em Saúde (SNVS). Além disso, o mal vem se expandindo no país.

Em 2000, 88% dos casos de leishmaniose registrados no Bra$estavam no Nordeste. Em 2008, porém, a região passou a ter 48% do total do país, enquanto, no mesmo período, os números evoluíram de 17% para 48% nas regiões Norte, Sudeste e Centro-Oeste. Já quanto ao tipo tegumentar, entre 2000 e 2008 foram notificados 238.749 casos no país. A incidência atual chega a 26.528 novos registros por ano, de acordo com o Ministério da Saúde. Entre 2000 e 2008 a prevalência da doença caiu 41%, de 20,3 casos por cem mil habitantes para 10,5 por cem mil.

Apesar do avanço do parasita que causa a doença, os medicamentos para tratá-la não mudam: a droga contra a leishmaniose é a mesma desde os anos 1940, e é muito tóxica. Não está disponível nas farmácias, pois as pessoas carentes não têm como comprá-la. Mas, segundo pesquisadores da Fiocruz, pelo menos ela não faltaria no serviço público, estando sempre disponível nos hospitais de referência.

Tida como doença rural, a leishmaniose visceral vem se urbanizando e já se espalhou pelo país, diz o pesquisador Sinval Pinto Brandão Filho, do Centro de Pesquisas Ageu Magalhães, órgão da Fiocruz em Recife. Ele acompanhou a doença por uma década em Pernambuco - onde, a cada ano, 1,2 mil pessoas são contaminadas, e onde Brandão Filho observou que, em dez anos, a proporção de municípios com o tipo visceral no estado passou de 15,2% para 78,3%:

- A forma visceral vem se espalhando pelo país e já foi detectada até mesmo em bairros de classe média de cidades importantes como Belo Horizonte, onde muitos cães morreram (no cão, que funciona como o reser$ório do inseto que transmite a infecção para o homem, a doença não tem cura).

O alerta de Brandão Filho sobre o avanço da enfermidade faz sentido. O próprio Ministério da Saúde reconhece que a doença vem se expandindo gradativamente. Em 2008, foram registrados casos autóctones (contraídos no próprio local) em 20 estados.

Em Teresina, o agricultor José Ribamar Madeira foi internado com leishmaniose visceral durante um mês, em um hospital especializado, o Instituto de Doenças Tropicais Nathan Portella, do governo do Piauí. Com a doença, seu peso foi de 60 kg para 40 kg. Após um mês de tratamento, o lavrador, ainda muito pálido, está com 50 kg. Com duas filhas, não conseguiu voltar ao trabalho, e diz que só sobrevive porque, viúvo, recebe pensão deixada pela mulher.

Embora letal nos caninos, a enfermidade pode ser tratada no homem. Caso contrário, resulta em morte. Provoca anemia, fraqueza, aumento do baço e do fígado, e se agrava muito em casos de pacientes desnutridos. O Ministério da Saúde registra que a letalidade da doença vem subindo: de 3,2% para 5,6%, entre 2000 e 2008, registrando-se maior morbidade na faixa etária a partir dos 50 anos, embora a doença seja mais comum entre crianças de até 10 anos, nas quais a letalidade chega a 10%, segundo o pesquisador.
Em 2008, foram feitas 2.996 internações pela visceral, com permanência média de 14 dias nos hospitais públicos. 

Recentemente, as autoridades sanitárias descobriram mais um motivo para preocupação: a coinfecção Leishmaniose/ HIV (o vírus da Aids), resultado da urbanização da visceral e da ruralização da Aids. Dos 3.852 pacientes confirmados da doença, 136 tinham o HIV, sendo 73,5% homens, com idade entre 20 e 49 anos.
Segundo o médico Kelsen Eulálio, professor de doenças infecto-contagiosas do curso de medicina da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e do Instituto de Doenças Tropicais Nathan Portella, o Nordeste é área endêmica da leishmaniose visceral. Piauí, Ceará e Bahia são os estados com mais casos.

De acordo com Ana Nilce Maia Elkhoury, do Programa de Doenças Transmitidas por Vetores e Antropozoonose do Ministério da Saúde, os tipos da doença são diferentes e as formas de contenção também. O Ministério da Saúde diz que tem feito esforço no diagnóstico precoce e na difusão de informações sobre a doença, pois a população não reconhece os sintomas.

Nilce afirma que, no caso da leishmaniose tegumentar, a prioridade são as ações preventivas. Ela diz que não há como erradicar a doença, uma vez que ela é essencialmente silvestre. Sobre a forma visceral, diz que há necessidade de ações mais complexas, com identificação das áreas prioritárias. Trabalha-se para reduzir o contato do homem com o vetor, seja pelo esclarecimento da população seja pelo controle químico, com borrifamento de inseticida.

A presença de flebotomíneos nas bordas de cidades em expansão, na fronteira agrícola de Rondônia, acendeu o sinal de alerta no Centro de Medicina Tropical do estado (Cemetron). Esses pequenos insetos, que voam curto, quase em saltos, são responsáveis pela transmissão de algumas doenças aos humanos e animais. A principal delas é a leishmaniose. Com o avanço humano sobre áreas silvestres, o inseto se adaptou, trocando a picada em capivaras e alguns roedores pelo sangue de cães e outros animais domésticos.
Os infectologistas ainda não somaram todas as notificações, mas a procura crescente de pessoas contaminadas aos ambulatórios e enfermarias do interior não deixa dúvidas.

- A reemergência da leishmaniose no Brasil está associada às áreas de ocupação recente, onde o homem passou a ficar exposto ao inseto - explica o infectologista Alex Miranda Rodrigues, do Cemetron.

Quem transmite a doença é o inseto fêmea, que nasce saudável e só se contamina após a primeira picada em que carregam o parasita (Leishmania). Elas transmitem a leishmaniose na segunda picada, quando injetam os protozoários na corrente sanguínea da vítima.
- Ao se adaptarem aos canídeos, os flebotomíneos conseguiram fechar o ciclo em áreas que chamamos peridomicílios. O homem não chega a ser a principal fonte de alimentação, mas a exposição dessas populações ao inseto é inevitável - afirma a infectologista Andréa Barbieri.

Como o tratamento, na primeira contaminação, dura 20 dias, os médicos lamentam o alto índice de abandono, pela impossibilidade de internação de pacientes que chegam de lugares distantes e não têm onde ficar. Embora Rondônia não seja afetada pela forma mais mortal, a visceral, mas pela forma tegumentar, Rodrigues e Andréa lembram que esse tipo, quando não tratado, pode provocar deformidades graves.

Os serviços de saúde combatem a doença com glucantime, chamada "droga medieval": está em uso desde os anos 1940. Rodrigues destaca que os grandes laboratórios não se interessam em produzir drogas para uma doença tropical que atinge populações empobrecidas.

 
Fonte: O Globo