As fortes chuvas que castigaram o Rio no início do ano passado deixaram como legado, além das mortes causadas pelos deslizamentos, dos danos a imóveis e carros e dos transtornos para os trabalhadores que tentavam voltar para casa, mais um risco: a leptospirose. “O número de casos dessa doença deve aumentar bastante devido ao contato que parte da população teve com água contaminada pela urina dos ratos com as enchentes”, alerta o professor Mauro Velho de Castro Faria, do Instituto de Biologia Roberto Alcântara Gomes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Ibrag/Uerj).
Responsável pelo projeto “Desenvolvimento de novos critérios prognósticos e terapêuticos para a leptospirose humana com base na cinética da toxicidade celular dos ácidos graxos livres verificada in vitro”, que recebeu apoio da FAPERJ por meio do edital de Apoio ao Estudo de Doenças Negligenciadas e Reemergentes, o médico com experiência na área de bioquímica coordena um grupo que pesquisa, há mais de 15 anos, os mecanismos fisiopatológicos da leptospirose. O estudo aponta um novo tipo de tratamento para a doença – causada pela infecção da bactéria conhecida como leptospira –, baseado na aplicação intravenosa de albumina humana, além de calcular as chances de melhoria do paciente.
As leptospiras penetram no organismo através da pele ou das mucosas, atingindo a corrente sanguínea e instalando-se em diversos órgãos, como fígado, rins, pulmões e até o sistema nervoso central. Além de estarem presentes na água suja das enchentes, também podem entrar no organismo pela ingestão de alimentos contaminados. Existem duas formas clínicas da leptospirose: a anictérica, mais comum (85 a 90% dos casos), com sintomas semelhantes aos causados pela influenza (gripe), como febre, cefaléia e dores musculares, especialmente nas panturrilhas; e a ictérica ou síndrome de Weil, responsável pelo restante dos casos e caracterizada basicamente pela presença de icterícia, distúrbios hemorrágicos e insuficiência renal aguda. “Estes casos mais graves apresentam taxas de mortalidade de até 50%”, informa.
Os pesquisadores desvendaram que uma determinada estrutura da leptospira, chamada de glicolipoproteína, está envolvida no desencadeamento das alterações provocadas pela leptospirose nos órgãos internos. A glicolipoproteína tem entre os seus principais componentes lipídicos os ácidos graxos não esterificados monoinsaturados, especialmente o oléico, que possuem efeitos tóxicos e afetam as trocas de sódio e potássio, necessárias para o equilíbrio do organismo. “Detectamos que a glicolipoproteína é inibidora específica do transporte ativo de sódio e potássio. Essa inibição está diretamente relacionada aos casos de insuficiência renal aguda, comum nas manifestações mais graves da doença”, explica o professor.
A insuficiência renal aguda da leptospirose, ao contrário dos demais tipos de insuficiência renal, evolui inicialmente com maior excreção renal de potássio, o que acarreta uma diminuição da sua concentração plasmática. "Levantamos a hipótese de que uma diminuída reabsorção de sódio nos rins pudesse aumentar as trocas sódio–potássio, promovendo também maior excreção do potássio. Essa alteração compromete a atividade da enzima (Na+, K+ ATPase) responsável pela absorção de sódio no túbulo proximal, que é uma parte do rim onde inicialmente se instala a leptospira. Isso poderia explicar essas alterações”, conta.
Os cientistas descobriram que a administração intravenosa de albumina humana pode ser a base de um novo tratamento para pacientes com casos graves da doença (síndrome de Weil). “Verificamos em experimentos laboratoriais in vitro que a albumina protege contra os efeitos tóxicos do ácido graxo e da glicolipoproteína da leptospira”, diz Castro Faria. Aplicações da substância em pacientes com estado avançado de leptospirose mostraram que a essa proteína contribui para reverter o comprometimento dos órgãos afetados pela insuficiência renal. “A albumina evita que a glicolipoproteína e o nível aumentado de ácidos graxos como o oléico, consequencia do comprometimento hepático, sejam inibidores da bomba de sódio e potássio. Nos casos graves, a albumina plasmática tende a atingir valores muito baixos, sendo uma das conseqüências da disfunção hepática”.
Outra contribuição do estudo diz respeito ao monitoramento da vulnerabilidade clínica dos pacientes com leptospirose, por meio da avaliação das chances do paciente melhorar ou não. “Desenvolvemos critérios de avaliação prognóstica por meio do controle da relação molar ácido oléico/albumina. A partir daí, podemos dizer qual a tendência do paciente piorar ou não, dois dias após o exame. Desenvolvemos também um teste capaz de monitorar a capacidade de proteção do soro sanguíneo do indivíduo contra o efeito citotóxico do ácido oléico, que apresentou ótima capacidade prognóstica”, diz.
Atualmente, os medicamentos utilizados no tratamento da leptospirose são basicamente antibióticos. No entanto, nem sempre a administração deles é eficaz. A pesquisa se propõe a preencher essa lacuna. “O antibiótico não é efetiva no tratamento para os casos graves. A leptospira é muito sensível a diversos antibióticos, mas só funciona no estágio inicial”, diz.
Quem teve contato com água contaminada devido aos recentes alagamentos no início do mês ainda pode apresentar os sintomas da leptospirose. Isso porque a leptospira tem um período de incubação, em média, de sete a 12 dias, podendo variar de um a 24 dias. “Sem dúvida, a maior parte dos casos ainda vai aparecer. Muitos não serão contabilizados, pois os sintomas dos casos mais brandos serão semelhantes ao de uma gripe comum”, avalia.
O Rio apresentou, em 1996, uma das maiores epidemias urbanas, logo após ter sido atingido por fortes temporais em fevereiro, com 1732 casos notificados e 51 óbitos. O contexto ambiental do surto de leptospirose naquele ano, na Zona Oeste, indicou que as maiores taxas de incidência ocorreram nas regiões sujeitas à inundação e ao redor das zonas de acumulação de lixo, apontando para a combinação de fatores sociais e ambientais.
A leptospirose está no grupo das chamadas "doenças negligenciadas" – aquelas que, segundo a classificação da Organização Mundial da Saúde (OMS), atingem predominantemente ou exclusivamente populações de países em desenvolvimento. “É uma doença mundial, mas nos climas tropicais há epidemias que atingem mais a população, especialmente nos períodos chuvosos”, conclui.
Fonte: FAPERJ