domingo, 8 de junho de 2014

Vidas em crise: a luta pela liberação do uso medicinal da maconha

Pela primeira vez, a Marcha da Maconha teve uma ala especial para reivindicar o uso medicinal da erva. O grupo é composto por pais cujos filhos sofrem de doenças genéticas raras, com crises epiléticas graves. E embora a Justiça já tenha liberado o medicamento para pelo menos duas famílias, a maioria ainda esbarra na burocracia para importar o produto à base de canabidiol (CBD) — substância encontrada na cannabis sativa — capaz de combater convulsões que podem levar à morte.

Foi o caso de Vitor Hugo Arcanjo Ferreira, de 12 anos, de Cuiabá. Ele morreu depois de quase um mês na UTI devido às crises sucessivas de epilepsia, causadas por uma doença sem diagnóstico definido. Mãe do menino, Selma Ferreira recebeu a reportagem do GLOBO e contou a luta da família pela sobrevivência de Vitor Hugo, entre pausas de silêncio e lágrimas. 


Convulsões fazem parte da rotina da pequena Sofia, que sofre de CDKL5.Sua mãe, Margarete, luta pela liberação do canabidiol

O primeiro passo foi convencer um médico a prescrever a substância. Como é ilegal, raramente um especialista se propõe a fazer a receita. Depois, ela bateu de porta em porta em órgãos da cidade, como a Promotoria da Infância e Juventude, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública, atrás de autorização judicial. No dia 29 de abril, a juíza Cleide Bispo Santos concedeu a liminar.

— A juíza chegou a dizer que não cabia a ela dar a liminar. Então fiz um pedido de mãe, disse que era a única oportunidade para o meu filho — conta Selma, que 24 horas depois recebeu a notícia da morte dele. — Fico me punindo. E se naquele primeiro dia em que estive na Promotoria, eu me desesperasse, implorasse? Talvez tivesse conseguido a decisão a tempo.

Selma seguiu o exemplo de Katiele Fischer, mãe de Anny, de 6 anos, que sofre da síndrome CDKL5, problema genético raro que também causa crises epiléticas. No caso de Anny eram quase 80 por semana. A importação da substância ocorria de forma clandestina desde novembro, mas a última remessa foi barrada na alfândega pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Para liberar o produto, a família recorreu à Justiça e foi a primeira a ter uma autorização do tipo.

— Quando conseguimos a ordem judicial, o juiz foi bem claro e disse que a Anvisa não poderia reter o CBD da Anny, mas ainda assim houve entraves burocráticos. Tivemos que preencher formulários de importação, pegar relatório e receita do médico, que só aceitou fazer a prescrição por causa da liminar. Era complicado, mas conseguimos — lembra Katiele.

Segundo a Anvisa, há um protocolo de importação de medicamento controlado sem registro no país. Para isso, são necessários prescrição e laudo médico, além de termo de responsabilidade. O órgão argumenta que os documentos são pedidos porque faltam dados que tratem da segurança do produto. Na segunda-feira, a Anvisa publicará informações em seu site para orientar interessados na importação. Já a Receita Federal pede uma licença de importação e informa que a taxa, neste caso, é de 15% do valor do produto.

Enquanto isso, o próprio Conselho Federal de Medicina já vê com bons olhos o uso medicinal do CBD. Por nota, explicou que o médico tem autonomia para prescrever ou não qualquer medicamento e que está realizando estudos sobre seus fins terapêuticos. Dependendo dos resultados, o órgão poderá editar norma para reconhecer o procedimento no Brasil.

— Na teoria a Anvisa libera, mas na prática está totalmente amarrada. Falta uma negociação no âmbito da política externa para se chegar a acordos que facilitem a prescrição médica. Por isso é imprescindível que estas famílias vão às ruas. Este precedente existe na Holanda, em Israel, nos EUA, e aqui há uma histeria daqueles que têm interesses em manter a proibição da maconha — critica o neurocientista e professor da UnB, Renato Malcher.

O advogado Emílio Figueiredo, um dos organizadores da Marcha da Maconha carioca, espera um grupo de pelo menos 30 pessoas para a ala da substância medicinal. Ele conta que essa ala já é parte permanente de outras marchas, como a de São Paulo:

— Ainda não são muitas pessoas, mas já é representativo. A marcha pode ajudar na sensibilização para o tema.

Já o professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, Valentim Gentil, considera que movimentos a favor da maconha estão usando a bandeira medicinal para acelerar o processo de legalização. Ele é um dos principais críticos do uso recreativo da erva e, ainda assim, concorda que ela tem substâncias terapêuticas:

— Não existe maconha medicinal, o que existe são componentes da planta, como o CBD, que são agentes terapêuticos. Se for possível conseguir alguém que a produza, com estabilidade de preparação, sem agentes tóxicos, com indicação comprovada, será como qualquer outro medicamento.

Apesar da crítica de setores da sociedade, a enfermeira Samar Santos decidiu que participará da marcha hoje. Ela é mãe de Davi, um menino sorridente prestes a completar 6 anos, portador da síndrome de Dravet, outra doença genética que provoca convulsões graves. Desde os sete meses, ele fica entre os cuidados de casa e do hospital para controlar suas crises, que chegam a 300 num único mês.

O orçamento familiar está todo voltado para o menino, que precisa de fisioterapeuta e medicamentos. Um deles custa R$ 4 mil, dura cerca de um mês, não resolve as crises e provoca efeitos colaterais: Davi está anoréxico, já que o remédio dificulta a alimentação. Há cerca de um mês, Samar tem trazido clandestinamente o remédio de CBD, descobriu como usá-lo pelo depoimento de outros pais. Apesar da dificuldade, comemora os resultados:

— A melhora foi de 95%. Foi a maior alegria ver o Davi, que mal consegue andar, caminhar daqui até a esquina (cerca de 100 metros), voltar, depois jogar bola e brincar no tapete dele. Foi emocionante — lembra-se.

Margarete Brito também participará da marcha para chamar atenção para a situação de sua filha, Sofia, de 5 anos, portadora do CDKL5:

— Quando ela tinha mais de uma crise por dia, acabava o dia dela. A contração muscular é generalizada, provoca taquicardia, é horrível, abala a família toda, desestrutura casamento, ficamos muito sensibilizados e totalmente impotentes.

Ela foi a primeira a importar o remédio americano, mas desistiu do uso por falta de orientação médica. Agora está usando um óleo à base de CBD produzido por um médico no Rio e tem visto melhora. Em entrevista ao GLOBO, o médico, que prefere não se identificar, é especialista em dor há 20 anos e lidava com a frustração de pacientes em sofrimento, mesmo após cirurgias e uso de remédios fortes.

Há quatro anos, começou a pesquisar o uso medicinal da maconha a fundo, foi à Holanda e aos Estados Unidos. Hoje ele planta uma espécie composta basicamente de CBD e produz um extrato que é receitado a um grupo de pacientes.

— No início havia muita resistência, mas as coisas estão mudando. Tenho pacientes com dor crônica, fibromialgia, cujo sucesso é muito grande. Agora estou também mais próximo destas crianças com epilepsia — conta o médico, que faz uma ressalva. — Não cobro por isso e não sou usuário, até porque quando experimentei me senti muito mal, meu interesse é terapêutico.

(O Globo)