Construções estreitas que abrigam numerosos habitantes, com higiene restrita, em cômodos pouco ventilados e úmidos, perto de esgotos a céu aberto. Esse perfil de ambiente propício à proliferação de doenças poderia ser o mesmo da moradia descrita em O cortiço, clássico da literatura brasileira que retrata as más condições de habitação da população pobre do Rio de Janeiro no fim do século XIX.
Passado mais de um século, esse cenário do romance do escritor maranhense Aluísio Azevedo só precisaria de algumas adaptações para retratar a falta de saneamento básico comum nas cidades brasileiras, um dos fatores responsáveis pelo retorno de males que já foram considerados erradicados. Entre reemergentes e negligenciadas, doenças infecciosas como tuberculose, dengue, leishmaniose, hanseníase e leptospirose voltam a representar, neste início de século, uma ameaça à saúde pública.
Entende-se por reemergentes as doenças conhecidas de longa data e que retornam de repente, freqüentemente com uma incidência maior, quando se acreditava que estavam sob controle ou erradicadas. Já as negligenciadas são consideradas aquelas que não recebem investimentos necessários para tratamento e prevenção, em boa parte devido a interesses econômicos. Especialistas atribuem o retorno dessas doenças às relações do homem com o meio ambiente. Além da falta de saneamento básico, ligada à pobreza e à urbanização desenfreada, questões como a desinformação, as mudanças climáticas e a resistência dos vírus depois de mutações também explicam o ressurgimento das infecções.
Tuberculose
Para Afrânio Lineu Kritski. Chefe do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a tuberculose está diretamente associada às condições precárias de habitação nos centros urbanos. “A incidência da tuberculose tem avançado nas grandes metrópoles dos países em desenvolvimento. Ela está ligada ao aumento da pobreza e à favelização. Imagine o bacilo circulando no ar de casas pequenas, que têm cerca de quatro pessoas no mesmo cômodo. A chance de transmissão nesse ambiente é maior, já que a vítima passa a doença para toda a família”, avalia.
Batizada de “mal do século” no século XIX, a doença dizimou milhares em vários países. “Morrer de tuberculose era considerado chique porque, no início, ela atingia especialmente a elite. A Revolução Industrial na Inglaterra, por volta de 1820, intensificou as migrações do campo para a cidade e, com o processo de urbanização, o número de vítimas aumentou mais entre os pobres. Daí surgiu no imaginário popular a idéia de que a tuberculose afeta mais alcoólatras e desempregados. Nascia o estigma de que a doença é coisa de gente desregrada, um castigo de Deus”, conta.
Dois séculos depois, um dos fatores que mais contribuem para a reemergência da tuberculose é a baixa imunidade causada pelo HIV. “A maior causa de mortalidade em pacientes soropositivos é a tuberculose. É fácil contrair o bacilo quando quem respira o ar contaminado está imunodeprimido”, explica Kritski, informando que o Rio de Janeiro é a capital líder no ranking de casos de tuberculose associados à Aids, seguida por São Paulo, Porto Alegre e Recife.
O diagnóstico tardio também é responsável pela disseminação da doença. “No Rio, em São Paulo e em Porto Alegre, de 20% a 30% dos casos de tuberculose ocorrem devido à transmissão em hospitais que não têm condições de detectar a doença a tempo”, diz. Os dados, esclarece Kritski, são da Rede Brasileira de Pesquisa em Tuberculose, a Rede-TB, da qual é vice-presidente.
O professor, que pesquisa a incorporação de novos testes para detectar a tuberculose nos hospitais públicos, alerta para a maior resistência do bacilo: “A tuberculose resistente aumenta. Um dos motivos é o abandono de tratamento, que deve ser no mínimo de seis meses. No país, de 83 mil casos por ano, a taxa de abandono anual é de 10%. Em alguns locais da Baixada Fluminense, chega a 30%”.
Hanseníase
Conhecida popularmente por lepra, a hanseníase é outra doença que volta a ser alvo das preocupações de especialistas e autoridades. Segundo a professora Euzenir Nunes Sarno, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), “A hanseníase não é uma doença reemergente no Brasil poque ela sempre ocorreu. A média de detecção de casos novos é a mesma há 15 anos ou mais, embora a prevalência de casos tenha caído acentuadamente. Hoje são cerca de 40 mil novos casos por ano no país. Seria mais adequado dizer que é uma doença negligenciada”. Ela explica que, como se trata de uma doença de longa duração, para a qual já existe um tratamento eficaz, não há grande interesse por parte da indústria farmacêutica de buscar novas drogas.
A pesquisadora acredita que o maior entrave no tratamento da hanseníase é o preconceito. “A rejeição social é o grande problema para diagnosticar a doença a tempo. O próprio paciente omite a hanseníase, seguindo uma tendência secular de se esconder, com medo de contaminar outras pessoas”, aponta. A enfermidade tem um histórico de isolamento social. “Antigamente, os pacientes eram confinados em colônias. Na década de 60, surgiu um movimento para transformar as colônias em hospitais gerais. Hoje, nenhum paciente é afastado. Quando ele está medicado, não contagia mais. Mas o medo continua no imaginário da população.”
Euzenir destaca a necessidade de uma mobilização para superar essa barreira social e combater a doença: “É preciso investir em campanhas de mídia de conscientização dos sintomas, para que as pessoas procurem tratamento, que dura pelo menos um ano, no caso da poliquimioterapia. Se a hanseníase for diagnosticada cedo, a chance de cura é muito alta. Mas quando é detectada mais tarde, depois de cinco anos, fica difícil”.
Ao longo do tempo, diversos estudos comprovaram que a dissemina ção da hanseníase – que tem focos em todo o país, exceto na região Sul – está associada à baixa renda. “A doença é mais comum nas populações carentes, que têm grande possibilidade de contágio devido às más condições de habitação. No Rio de Janeiro, a maior concentração é na Baixada Fluminense, em municípios como Nova Iguaçu, Caxias e São João de Meriti. O Grande Rio tem em torno de 2 mil casos por ano, enquanto a capital tem uma média de 600 casos”, diz a professora.
Leishmaniose
A leishmaniose é outra das enfermidades consideradas reemergentes e negligenciadas. No Estado do Rio, um dos pesquisadores que têm acompanhado de perto a evolução da doença é o professor Edésio de Melo, do Laboratório de Biologia Celular e Tecidual da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf).
Causada pelo protozoário leishmânia, a doença é uma zoonose, transmitida por animais, como cães e roedores, para o homem, por meio do mosquito Lutzomyia longipalpis. “A forma mais tradicional de leishmaniose humana no Brasil é a que causa ferimentos na pele. Existem casos em que ela pode ser fatal, quando ataca os órgãos internos. É a leishmaniose visceral, mais comum na Ásia”, diz o pesquisador, acrescentando que o Nordeste e a Região Metropolitana de Belo Horizonte são os principais focos da doença no país.
O crescimento desordenado de animais justifica os surtos dessa doença. “A reemergência da leishmaniose nos centros urbanos decorre do aumento do número de cães infectados, que vivem na rua. A falta de saneamento básico está ligada indiretamente à proliferação da doença, porque faz a resistência imunológica da população diminuir”, diz Melo. E ressalta: “O combate epidemiológico é importante nas periferias, porque é nelas que mais ocorrem casos epidêmicos nas grandes cidades”.
Leptospirose
Transmitida pela água contaminada pela urina de ratos ou cães, a leptospirose atinge, principalmente, a população sem acesso às condições básicas de higiene. É comum aparecerem surtos da doença em épocas de enchentes. “Os serviços de saneamento não acompanham o crescimento das cidades. A falta de dragagem dos rios contra as enchentes, de controle de roedores e de uma coleta regular de lixo facilita a transmissão da doença”, diz Walter Lilenbaum, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), que avalia a enfermidade como uma doença emergente: “Não houve uma retomada do crescimento da doença. Depois do primeiro surto epidêmico que atingiu o Rio de Janeiro, em 1988, os números crescem permanentemente”. O pesquisador acredita que, para combater a leptospirose, é necessário investir em mudanças ambientais. “As medidas de controle saem da esfera da saúde. É preciso um programa intenso de saneamento básico e de controle de roedores.”
O professor diz que não existe uma resistência maior da bactéria Leptospira interrogans. “O desafio não é a mutação da bactéria, mas as condições ambientais inadequadas. Não é à toa que a leptospirose ocorre nas regiões tropicais de países em desenvolvimento”, diz Lilenbaum, que estuda uma forma de identificar proteínas das bactérias que possam ser utilizadas em diagnósticos mais eficientes ou em uma vacina – visto que a vacina para uso humano ainda tem limitações e, por isso, é empregada em poucos países, como Cuba e China, mas não é utilizada no Brasil.
Dengue
A dengue é a doença reemergente e negligenciada que mais assusta os cariocas. O professor da Faculdade de Medicina da UFRJ Roberto Medronho. Assim como as outras doenças reemergentes e negligenciadas, a dengue está ligada às condições de vida da população. “Os surtos de dengue são conseqüência dos descasos com o saneamento básico, como falta de água encanada e de coleta regular de lixo. No Rio, fatores como a alta densidade demográfica, o clima quente e a própria característica portuária da cidade, que é uma porta de entrada para pessoas de vários lugares, contribuem para a ocorrência de epidemias regulares”, explica Medronho.
Ele ressalta que o tratamento da doença, transmitida pelo mosquito Aedes aegypti, não é prioridade dos países ricos. “A dengue é negligenciada pelos laboratórios internacionais. Alguns deles desenvolvem protocolos de vacina, mas com lentidão. É uma doença típica de países pobres e tropicais”, diz. E ressalta: “A dengue é muito mais antiga e menos complexa do que a Aids e ainda não tem um financiamento adequado para o desenvolvimento de uma vacina ou de um tratamento específico antiviral”.
De acordo com o especialista, os investimentos em pesquisa na área devem ser constantes: “As pesquisas só oferecem resultados em longo prazo. Já que os países desenvolvidos não investem na pesquisa desse grupo de doenças, que nós tomemos a expertise dos pesquisadores brasileiros para prevenir ou controlar de forma mais adequada a dengue e outras doenças reemergentes e negligenciadas. É preciso uma maior integração entre município, estado e União para conter o surgimento de novas epidemias.”
Fonte: Débora Motta, Rio Pesquisa