A legislação brasileira e a burocracia impediram a família do estudante Vitor Hugo Arcanjo Ferreira, de 12 anos, de ao menos tentar um tratamento com o Canabidiol, que tem substâncias derivadas da maconha. Morador de Cuiabá, no Mato Grosso, ele sofria de uma doença sem diagnóstico definido que gerava crises sucessivas de epilepsia grave,com comprometimento neurológico, psíquico e motor. O medicamento não traria a cura, mas combateria as convulsões.
Dois dias após a Justiça autorizar a família a importar o Canabidiol, cuja comercialização é proibida no Brasil, o garoto não resistiu a mais uma das inúmeras e severas crises convulsivas. A morte, no último dia 1º de maio, veio quando a mãe Selma Ferreira Arcanjo, já com a liminar e o dinheiro em mãos, iniciava os procedimentos para importar o remédio dos Estados Unidos, ao preço de US$ 450 a ampola.
- Desde que vi uma reportagem no "Fantástico", no dia 30 de março (sobre a menina Anny, cujos pais lutavam na Justiça para importar o medicamento), passei a pesquisar, entrei em um grupo de discussão, me comuniquei com famílias com o mesmo problema. Vi que poderia estar ali uma salvação para meu filho – conta a mãe, referindo-se à reportagem sobre a família de Anny, a menina que conseguiu ter acesso ao remédio graças a uma liminar judicial.
No último dia 11 de abril, Vitor Hugo precisou ser internado na UTI com mais uma crise severa. Em dois dias, a mãe conseguiu convencer o médico intensivista a prescrever o Canabidiol, primeiro passo para quem almeja uma autorização judicial para a importação.
O neurocientista Renato Malcher, professor da Universidade de Brasília (UnB), confirma que o CBD poderia ser indicado no caso de Vitor Hugo, já que é amplamente recomendado para controlar convulsões de diferentes origens:
- O CBD evita o excesso de ativação dos neurônios, além de protegê-los. É uma droga que estaria entre as mais indicadas para qualquer tipo de convulsão, apesar de não ter reconhecimento totalmente estudado. A proibição da maconha, em todo o mundo, dificultou estudos sobre o tema, mas os aspectos anticonvulsivantes da droga já são conhecidos há séculos.
Além da barreira da proibição legal, Selma ainda teve que bater de porta em porta de órgãos em Cuiabá antes de conseguir a liminar.
O primeiro que ela procurou foi a Promotoria da Infância e Juventude, dia 13 de abril. De lá o promotor José Antônio Borges a encaminhou para o Ministério Público Federal, já que a Anvisa, que proíbe a comercialização no país, é um órgão do governo federal. Por se tratar de ação individual, o MPF entendeu que também não era competente e aconselhou Selma a procurar a Defensoria Pública da União. Neste último, uma servidora comunicou à mãe que faria um pedido do medicamento administrativamente, sem recorrer à Justiça.
- Expliquei a ela que isso eu já estava fazendo. O que eu precisava naquela hora era de uma liminar urgente. Era a vida de meu filho que estava em jogo. Mas não adiantou explicar – conta a mãe.
Sem resultado na Defensoria, ela voltou a procurar a Promotoria da Infância e Juventude. Já haviam se passado 18 dias desde que Vitor Hugo dera entrada na UTI.
- Eu entrei na sala dele chorando, implorando por ajuda. O promotor se revoltou com minha peregrinação e fez ali mesmo um pedido de liminar – relata.
Embora soubesse que uma ação contra a Anvisa seria de competência federal, o promotor José Antônio Borges fez o pedido com base em um dispositivo legal pelo qual o juiz pode determinar uma medida de urgência para evitar lesão grave, mesmo se considerando incompetente para julgar o caso.
- Foi a solução que encontrei naquele momento. Uma pena que o esforço tenha sido em vão – diz Borges.
No mesmo dia, 29 de abril, uma terça-feira, a juíza Cleide Bispo Santos acatou os argumentos e concedeu a liminar. Antes, porém, atendeu a mãe em seu gabinete e ouviu dela um apelo emocionado.
- A juíza chegou a me dizer que não cabia a ela dar a liminar. Então fiz um pedido de mãe. Disse que aquela era a única oportunidade que meu filho tinha - conta. Apesar dos esforços de Selma, menos de 24 horas depois ela receberia a notícia da morte do filho.
Nesta quinta-feira pela manhã, Selma recebeu a reportagem de O Globo em sua casa, em um bairro classe média baixa de Cuiabá. Em cerca de duas horas, contou passo a passo sua luta pela saúde do filho, intercalando falas pausadas, silêncio e lágrimas.
- Fico me punindo. E se naquele primeiro dia em que estive na Promotoria, eu me desesperasse, implorasse? Talvez tivesse conseguido a decisão a tempo de salvar o Vitor. As coisas aconteceram numa sincronia de tempo muito triste.
(O Globo)