sábado, 28 de novembro de 2009

Um plano para salvar o planeta

Trecho inédito do novo livro do ex-vice-presidente americano (Nossa escolha, editora Amarilys), que apresenta seu projeto para um mundo próspero e livre das mudanças climáticas

Por Al Gore

Quase 20 anos atrás, o falecido romancista americano Kurt Vonnegut escreveu: “Além da juventude em si, há algo dos Estados Unidos da minha juventude de que eu realmente sinta falta? Existe sim uma coisa da qual eu sinto tanta saudade que mal consigo suportar – a liberdade de viver sem achar que os seres humanos muito em breve vão transformar este agradável planeta azul e verde em um lugar inabitável”.

Com sua mistura característica de surrealismo, humor negro e cinismo, Vonnegut foi mais adiante: “Se alienígenas em discos voadores, anjos ou qualquer outro tipo de criatura vierem para cá, digamos, daqui a cem anos e nós tivermos desaparecido como os dinossauros, qual seria uma boa mensagem para a humanidade deixar a eles, talvez entalhada em letras garrafais em uma superfície do Grand Canyon?”.

A sugestão dele foi: “Nós provavelmente poderíamos ter salvado nossas vidas, mas fomos uns malditos preguiçosos para tentar de verdade. E mesquinhos também”.

A consciência de que graves danos já foram causados ao meio ambiente e ao equilíbrio climático saudável do qual nossa civilização depende pode desencadear um desespero paralisante. O perigo é que esse desespero nos torne incapazes de tomar as rédeas de nosso próprio destino a tempo de evitar a inimaginável catástrofe que assolará o planeta se não fizermos mudanças dramáticas rapidamente.

A maioria dos especialistas em crises climáticas concorda que nós provavelmente ainda temos tempo para evitar o pior e abrir caminho para uma longa, mas sem dúvida bem-sucedida, recuperação do equilíbrio climático e da integridade ecológica tão cruciais para a sobrevivência de nossa civilização.

De qualquer forma, esse desespero é inútil se a realidade ainda nos oferece esperanças. O desespero é apenas outra forma de negação e leva ao comodismo. Não temos tempo para sentir desespero. As soluções estão a nosso alcance! Nós precisamos fazer a escolha de entrar em ação agora. Um antigo provérbio africano diz: “Se quiser ir rápido, vá sozinho; se quiser ir longe, vá em grupo”. Nós temos de chegar longe e rápido.

Ao longo dos três anos e meio desde a publicação e o lançamento de Uma verdade inconveniente, organizei e moderei mais de 30 longas e intensas Reuniões de Soluções, nas quais os maiores especialistas do mundo todo se reuniram para discutir experiências em temas relevantes à formulação de um plano para solucionar essa crise. Além de promover esses encontros coletivos, rodei o mundo, participando de várias conversas particulares com outros grandes especialistas sobre essas soluções em um esforço adicional para chegar às medidas mais eficazes. (...)

Deveríamos estar muito felizes, uma vez que aqueles que estão vivos hoje têm o raro privilégio que poucas gerações na história já tiveram: a chance de fazer parte de uma missão histórica digna de nossos melhores esforços. Deveríamos encarar como uma honra o fato de vivermos em uma época que definirá para sempre o futuro da civilização humana com base nas escolhas que fazemos hoje.
Ao enfrentar esse desafio, encontraremos novas evidências de que o destino de nossa civilização depende de medidas eficientes, conjuntas e globais para manter nosso planeta habitável e construir as bases para um mundo mais justo, humano e próspero. (...)

Já ouvi muitas vezes pessoas dizer que acham difícil acreditar que um compromisso conjunto como esse fosse possível até mesmo nos Estados Unidos, quanto mais em escala global. No entanto, neste exato momento, estamos começando a seguir com empenho na direção certa. Seja por meio da identificação de oportunidades de mercado pelas grandes empresas, seja pela determinação de um grupo de alunos da 5a série em ajudar a “pôr fim ao aquecimento global”, os sinais de mudança estão surgindo por toda parte.
O crescimento da população global, por exemplo, já está desacelerando e começando a se estabilizar, embora ainda possa chegar dentro de algumas décadas a um patamar cinco vezes e meia maior que a população do início do século XX. Outra empolgante notícia dos últimos três anos foi o começo de uma grande mudança na consciência das pessoas do mundo todo sobre a crise climática e suas ligações aos outros grandes desafios que nós enfrentamos.

A eclosão de uma crise econômica global sem precedentes no segundo semestre de 2008 ressaltou a importância de um incentivo global voltado para a criação de empregos e a contenção dos efeitos dessa recessão incrivelmente profunda e sistêmica. Ao mesmo tempo, a piora do conflito militar no Afeganistão e o incessante esforço para a estabilização do Iraque servem como um lembrete das ameaças s que provavelmente continuarão emanando da região do Golfo Pérsico enquanto os Estados Unidos e o resto da economia global forem tão dependentes do petróleo – cujas maiores reservas continuam nas mãos de Estados totalitaristas no Oriente Médio.
Embora geólogos e economistas continuem debatendo sobre quando o pico de produção de petróleo será alcançado, a maioria das evidências atuais sugere que podemos estar próximos ou talvez já tenhamos chegado a esse ponto, ao menos no que se refere às reservas que podem ser extraídas a um custo compatível com os padrões atuais. Em uma primeira análise aprofundada dos 800 maiores campos petrolíferos do mundo, a Agência Internacional de Energia mostrou, no ano passado, que a maioria dos grandes poços já superou seu ápice de produção, e o ritmo do declínio esperado na produtividade está acelerando ao dobro da taxa prevista em 2007.

Boone Pickens, o altamente bem-sucedido magnata veterano do ramo do petróleo e da gasolina, declarou em agosto que, em sua opinião, a produção global de petróleo atingiu seu ápice em 2006. Independentemente de a análise estar certa ou não, é apenas uma questão de tempo até que o mundo seja forçado a se ajustar à realidade de uma discrepância cada vez maior entre a diminuição de descobertas de reservas e a crescente demanda por petróleo das economias emergentes.

Enquanto os Estados Unidos continuarem gastando quase US$ 500 bilhões importando petróleo, o déficit da balança comercial seguirá crescendo, e o valor do dólar ficará cada vez mais vulnerável. E enquanto a economia global for refém das reservas energéticas da região mais instável do planeta continuaremos vendo disparadas periódicas de preços, como a que levou o valor do barril de petróleo a US$ 145 no primeiro semestre de 2008.

Por sua vez, a China vem usando seu imenso superávit comercial para comprar empresas de energia e posições de controle de campos petrolíferos em diversas partes do mundo. Os chineses também deram início a um ambicioso plano para dominar a produção de painéis solares que eles pretendem fabricar para uso interno e para a transição mundial ao estágio de produção de energia de baixo carbono. Eles também logo se tornarão a maior fonte de energia eólica no mundo e estão construindo uma super- -rede de 800 quilovolts conectando todas as regiões da China à rede de distribuição de eletricidade mais inteligente e sofisticada que o mundo já viu.

Em contrapartida, o déficit atual dos Estados Unidos está sendo conduzido pela ridícula alta dependência do petróleo estrangeiro, o que o Instituto Peterson – fundado pelo ex-secretário de Comércio dos EUA Pete Peterson – descreve como uma catástrofe econômica esperando para acontecer. No primeiro trimestre de 2009, o déficit da balança comercial dos Estados Unidos ficou em US$ 101,5 bilhões (menor do que o esperado em virtude da recessão), graças em parte aos US$ 46 bilhões gastos com a importação de petróleo e seus subprodutos de outros países.

Todas essas três crises – de segurança, econômica e climática – parecem irremediáveis quando encaradas como problemas isolados. Mas, sob uma análise mais cuidadosa, é fácil encontrar um fio que perpassa todas elas de forma ironicamente simples. Nossa perigosa dependência exagerada dos combustíveis de carbono é a essência de todos esses três desafios.

"É uma honra viver em uma época que definirá para sempre o futuro da civilização"

Se conseguirmos agarrar esse fio e puxá-lo com força, todos esses problemas complexos começarão a se desemaranhar, e então perceberemos que estamos com a resposta para todos eles bem em nossas mãos: precisamos de um comprometimento histórico para que as pessoas trabalhem na elaboração da infraestrutura e da base tecnológica em função de uma imensa e rápida mudança de carvão, petróleo e gasolina para outras formas renováveis de energia.

O pacote de incentivos lançado pelo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, foi um grande passo para a elaboração de uma infraestrutura de energia renovável nos Estados Unidos. No entanto, até o presente momento, as empresas de petróleo, carvão e gás natural, aliadas às usinas elétricas dependentes de combustíveis fósseis e aos refutadores ideológicos da crise climática, continuam influenciando as decisões tomadas pelo Congresso, vetando a legislação de clima e energia no Senado. (...)

Se não tomarmos medidas drásticas, os piores impactos da crise atingirão muitas gerações, causando cada vez mais destruição, década após década. Não podemos esperar pela eclosão total da crise para dar a devida resposta, pois já será tarde demais para deter esse processo que nós mesmos iniciamos. A essa altura, a geração que finalmente perceber que a humanidade foi condenada a uma irreparável degradação de suas esperanças para o resto de sua existência, e da existência de seus filhos e netos, terá toda a razão em olhar para trás e nos julgar como uma geração criminosa a ser amaldiçoada para sempre como a responsável pela destruição da humanidade.Em termos práticos, a salvação das futuras gerações precisa começar neste momento. Mesmo enquanto estendemos nossas mãos aos que estão sofrendo hoje, precisamos ter a consciência de que esse auxílio é apenas o início daquilo que realmente precisa ser feito.


Fonte: Revista Época, 27/11/2009