Débora Vallory Figuerêdo
As instituições de ensino e de pesquisa lidam com um universo diversificado de produtos químicos e geram uma quantidade extraordinária de materiais residuais, muito deles perigosos em função de suas características de inflamabilidade, corrosividade, reatividade e toxicidade. Acresce a esta diversidade o regime variável de geração de resíduos que é função não só das múltiplas e variadas atividades acadêmicas, mas também das demandas das diferentes pesquisas e dos inúmeros serviços prestados. A falta de um programa de gestão na maioria dessas instituições no País tem levado, com freqüência, a um descarte pouco responsável desses materiais perigosos no ambiente, através das pias dos laboratórios ou do lixo comum, ou em outros casos, resultou na geração de passivos ambientais acumulados por longo tempo à espera de um eventual tratamento.
Levantamentos de passivos desenvolvidos em instituições mais antigas apontam para uma quantidade significativa de produtos químicos obsoletos que por inúmeras razões não foram integralmente consumidos ou reaproveitados por terceiros em tempo hábil e que, por vários anos, às vezes décadas, permanecem estocados em locais inadequados e propícios a acidentes. É grande também a quantidade encontrada de preparações e produtos desconhecidos com rótulos que não indicam a composição química exata da preparação, ou que estão inelegíveis ou são inexistentes porque se soltaram dos frascos durante a estocagem prolongada e sob condições de insolação ou umidade acentuadas. Além desses materiais é comum deparar-se com solventes orgânicos halogenados contaminados, éteres velhos formadores de peróxidos explosivos, misturas complexas resultantes de reações químicas contendo metais pesados tóxicos, etc.
Essas duas situações opostas e igualmente inadequadas de descarte indiscriminado ou de estocagem sem critério e planejamento podem conduzir a situações de risco, com possibilidades de incêndios, explosões, derramamentos e contatos acidentais com soluções corrosivas e tóxicas, exposições a gases e vapores tóxicos, calor excessivo, entupimentos e avarias nas redes de esgotamento sanitário, com danos muitas vezes irreversíveis à vida humana, ao patrimônio ou ao meio ambiente.
Esse descaso é paradoxal na medida em que o ensino associado às boas práticas de gestão ambiental é um dever inerente às instituições acadêmicas e de pesquisa. Estas são responsáveis pela formação de profissionais conscientes e responsáveis que devem estar devidamente preparados para se engajarem no modelo do desenvolvimento sustentável, onde se planeja qualquer processo ou atividade em função do uso racional, seguro e ambientalmente adequado dos diversos recursos e tecnologias existentes. Essa realidade complexa aliada à missão intrínseca de educar com ética aponta para a necessidade premente de implantação de programas de gestão de materiais residuais perigosos por parte das instituições de ensino e de pesquisa do País.
Os benefícios auferidos com a implantação de um programa de gestão se traduzem na melhor visibilidade da instituição quanto à sua responsabilidade social e ambiental, na contribuição à formação de novos e acertados hábitos associados à cultura do não desperdício, na diminuição dos riscos de exposição a produtos perigosos e na melhoria das condições de trabalho, na redução de gastos e, por fim, no correto atendimento às normas e exigências legais.
A Agenda 21, firmada na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento - ECO-92, no Rio de Janeiro, reconhece em seu Capítulo 20, que o controle dos resíduos perigosos do berço ao túmulo, ou seja, da geração até a disposição final é de extrema importância para a saúde do homem, a proteção do meio ambiente, o manejo dos recursos naturais e o desenvolvimento sustentável. Consoante com esta afirmação, o objetivo geral da gestão de materiais residuais perigosos é “impedir, tanto quanto possível e reduzir, ao mínimo, a produção de materiais residuais perigosos, e submeter esses materiais residuais a um manejo que impeça danos ao meio ambiente”.
Observa-se nessa definição a consideração de um dos principais princípios do direito ambiental, o Princípio da Prevenção e Precaução, na medida em que o prioritário é lançar mão de estratégias que buscam minimizar a geração do material residual na fonte, como parte de um enfoque mais amplo de mudança nos padrões de consumo, racionalização do uso de recursos e substituição de processos poluidores por tecnologias limpas.
A segunda prioridade é verificar se os materiais residuais inevitávelmente gerados podem ser reaproveitados na própria instituição ou no meio externo. Apesar de não reduzir a geração do material na fonte, a estratégia de reaproveitamento dos resíduos é importante, na medida em que permite converter resíduos em materiais úteis e reintegrá-los a um ciclo econômico, obtendo economia de recursos materiais e financeiros e reduzindo a quantidade de rejeitos enviada para tratamento e disposição final.
Esgotadas as possibilidades de reaproveitamento dos resíduos, esses passam a se caracterizar como rejeitos, devendo sofrer tratamento interno para redução do seu volume e/ou toxicidade. Se não for possível eliminar a carga poluidora dos rejeitos na própria instituição geradora, parte-se para as opções de tratamento externo disponíveis no mercado. A ultima etapa na hierarquia do gerenciamento é realizar a disposição final dos rejeitos de forma a não sujeitar o ambiente e a sociedade a riscos indesejáveis.
No passado a ênfase das condutas ambientais se apoiava majoritariamente na crença de que os recursos atmosféricos, hídricos e o próprio solo teriam uma capacidade ilimitada de autodepuração dos resíduos não havendo assim preocupação nem com a reutilização dos materiais gerados e, muito menos, com a redução da geração na fonte. Hoje, sabe-se que poluição é desperdício de matérias-primas e insumos, ou seja, ineficiência do processo, recursos financeiros e materiais perdidos e uma ameaça à sustentabilidade do Planeta.
Segundo a Environmental Protection Agency – EPA, minimização significa qualquer ação que reduza a quantidade ou a toxicidade dos materiais residuais gerados antes de um eventual tratamento para disposição final. Inclui as estratégias de redução na fonte e de reaproveitamento de resíduos. A redução na fonte, conhecida como prevenção da poluição (ou P2), é a estratégia preferencial na medida em que elimina ou reduz a geração do material residual na própria fonte geradora. A estratégia de redução na fonte pode ser conduzida mediante melhorias na gestão de materiais e das atividades e processos laboratoriais.
Como forma de garantir o sucesso contínuo de um programa de gestão de resíduos, o National Research Council dos EUA (NRC, 1983) recomenda que se faça o planejamento de novas atividades a partir das seguintes indagações:
• O experimento ou ensaio vai produzir um resíduo perigoso agudo?
• Há possibilidade de substituir um reagente (ou solvente) perigoso por Outro menos nocivo ou de disposição mais fácil?
• Existe um método equivalente com menor periculosidade para realizar o experimento?
• Os materiais residuais gerados poderão ser recuperados para reuso?
• Os materiais poderão ser destruídos por procedimentos usuais de laboratório?
• Os materiais residuais requerem algum tipo de disposição final onerosa ou não usual?
Além do planejamento dos experimentos, com substituição de métodos e reagentes perigosos por outros menos perigosos, a EPA (1990), Reinhardt (1995) e ACS (2002) recomendam a adoção das seguintes práticas para reduzir a geração de resíduos na fonte: centralizar e padronizar as compras produtos químicos, reduzir a diversidade de produtos químicos usados, fazer previsões mais acuradas da demanda de produtos químicos e outros recursos, implantar e controlar o inventário de produtos químicos e de materiais residuais, encorajar fornecedores a se tornarem parceiros responsáveis, aumentar o uso de instrumentação e reduzir a escala dos experimentos.
Na impossibilidade de ser substituído o método ou produto químico perigoso por alternativas menos perigosas, deve-se fazer previsões de custo e de prazo nos projetos e serviços para manejar e destinar adequadamente os materiais residuais gerados nos experimentos e ensaios.
Na hierarquia da gestão, a segunda prioridade é viabilizar o reaproveitamento de resíduos. Resíduos são materiais remanescentes de doações, almoxarifados, processos, ensaios, atividades, e que apresentam um potencial de reaproveitamento, seja por reuso, na forma em que foram gerados, ou por reciclagem e recuperação, mediante tratamento prévio. Assim, o reaproveitamento é aqui entendido como qualquer ação que resgata o resíduo para uso, com ou sem tratamento, eliminando ou reduzindo a quantidade de material a ser enviada para disposição final.
Quando o reaproveitamento não for viável dentro da própria instituição, pode-se considerar a opção de doação ou permuta com outras instituições. O reaproveitamento pode ocorrer na forma de redistribuição automática de produtos químicos excedentes, reutilização de resíduos para usos menos nobres, reciclagem ou recuperação de reagentes e de metais preciosos, reciclagem de solventes por destilação e de reaproveitamento de resíduos em atividades didáticas casadas, entre outras. Uma experiência interessante é a implantação de uma Bolsa de Resíduos através de um mecanismo onde os produtos residuais inventariados e doados são orçados pelo fornecedor - parceiro responsável - como produtos químicos de segunda linha. O doador informa à instituição receptora o ganho financeiro que a mesma passou a usufruir e relata à Alta Direção da instituição a que pertence a perda de recurso financeiro em função da ineficiência do seu processo de gestão.
Somente se gerencia aquilo que se conhece. Portanto, o ponto de partida para o Programa é implementar o inventário de fontes, ou seja, conhecer melhor a etapa de geração, caracterizando o perfil de cada atividade poluidora e relacionando qualitativa e quantitativamente os resíduos gerados pela fonte. O inventário de materiais residuais, por sua vez, lida com ativos e passivos ambientais. O inventário do passivo ambiental tem como objetivo identificar o material residual que foi gerado, acumulado e armazenado em tempos passados, para o qual não se teve na época soluções de tratamento e descarte adequados. A existência deste tipo de herança é altamente problemática, pois grande parte deste passivo costuma ser de natureza química desconhecida, em virtude da perda ou deterioração de rótulos e mesmo de rotulagem inadequada, dificultando e onerando a disposição final destes materiais. O inventário do ativo ambiental visa identificar o material residual que está sendo gerado em atividades correntes e cuja acumulação e armazenamento ocorrem segundo procedimentos rotineiros e usuais. Uma vez que o programa esteja em curso na instituição, não mais se admite a existência de passivos, e o gerenciamento se torna então um trabalho para gestão dos ativos ambientais. Na fase do inventário é que é feita a caracterização do material residual.
As informações básicas para caracterizar o material são: composição química, estado físico, perigos e riscos, classe de segregação, condição de uso (parcialmente usado ou selado), validade, ativo ou passivo, resíduo ou rejeito, quantidades geradas, movimentadas e estocadas, fonte geradora, setor, laboratório e nome do responsável pela geração, local de armazenamento. Estas informações permitem identificar as condições de reaproveitamento daquele material, sua rastreabilidade e as propriedades que podem causar danos ao homem e ao meio ambiente. A norma ABNT NBR 10.004: 2004 e as fichas de informação de segurança de produtos químicos – FISPQ auxiliam na identificação dos perigos associados aos resíduos químicos produzidos em laboratórios.
O manejo de materiais residuais é entendido como a ação de gerenciar os resíduos e rejeitos, em seus aspectos intra e extrainstituição, desde a geração até a disposição final, incluindo as etapas de segregação na fonte, acondicionamento, identificação, transporte interno, armazenamento temporário, tratamento interno, descarte, transporte externo e disposição final. Os materiais residuais inevitavelmente gerados e previamente inventariados devem ser submetidos a um manejo que permita reaproveitar resíduos para uso e destinar adequadamente os rejeitos no ambiente. Para isso, a instituição deve estabelecer um sistema de manejo que possibilite, com procedimentos pré-estabelecidos:
a) realizar uma segregação detalhada no local e no momento da geração, de acordo com as características físicas, químicas e biológicas, estado físico e riscos envolvidos. A primeira etapa é identificar se o material gerado é um resíduo ou rejeito, perigoso ou não perigoso. O resíduo é passível de reaproveitamento, com ou sem tratamento. Deste modo, a unidade geradora deve decidir se há interesse em reaproveitar este material. Caso negativo, o resíduo deve ser encaminhado para uma central institucional para ser distribuído para outros setores da instituição ou para outras instituições. O rejeito, por sua vez, é material inservível e, no caso de ser perigoso, deve ser tratado antes da disposição final, enquanto que os não perigosos podem ser descartados no ambiente observando a legislação pertinente;
b) efetuar o acondicionamento em embalagens de material durável, resistente à ruptura e vazamento e compatível com a natureza química dos materiais acondicionados. Sempre que possível, deve-se evitar o uso de recipientes grandes no laboratório. Entretanto, se as taxas de geração de resíduo são elevadas, pode-se utilizar bombonas de 10-15 l. Para volumes superiores a 10 l, as embalagens plásticas são preferíveis, exceto quando houver incompatibilidade com o material residual;
c) prover a correta identificação dos materiais residuais de modo a permitir o reconhecimento dos constituintes contidos nas embalagens e fornecer informações ao correto manejo dos materiais. Rótulos e etiquetas inadequados, com grafia ilegível ou mal conservados, devem ser sistematicamente evitados. Para isso é necessário não só identificar claramente o conteúdo do recipiente, sua periculosidade e o nome e telefone do gerador, mas também assegurar condições ambientais e operacionais apropriadas para a contínua manutenção da qualidade original dos rótulos e etiquetas, evitando a geração dos indesejáveis e perigosos rejeitos de natureza desconhecida;
d) realizar o transporte interno dos materiais residuais dos pontos de geração até os locais destinados ao armazenamento temporário;
e) garantir o armazenamento temporário e seguro de materiais residuais nos entrepostos locais próximos aos pontos de geração de cada laboratório e em um entreposto institucional, onde os materiais dos diversos setores geradores devem ser reunidos de forma organizada para permitir o seu reaproveitamento através de uma Bolsa de Resíduos ou a sua acumulação para tratamento e disposição final. É necessário manter as substâncias químicas incompatíveis separadas, dispor de procedimentos e mecanismos que assegurem o controle do fluxo destes materiais e inspecionar periodicamente as áreas de estocagem;
f) efetuar o tratamento dos materiais residuais no laboratório gerador e/ou numa central institucional, de forma a viabilizar o reuso dos resíduos e reduzir o volume e a toxicidade dos rejeitos antes da destinação final. O tratamento pode ser feito através de métodos químicos, físicos, térmicos e biológicos. A neutralização, a precipitação química e a oxi-redução são os métodos mais freqüentemente utilizados para tratar as correntes inorgânicas, enquanto que as orgânicas podem ser reaproveitadas através da destilação de solventes ou tratadas por oxi-redução;
g) proceder ao descarte interno dos rejeitos líquidos não perigosos na rede de esgotamento sanitário e dos sólidos no lixo comum, desde que a operação de descarte seja realizada com conhecimento técnico, procedimentos pré-estabelecidos e conduzida segundo a legislação ambiental vigente;
h) contratar os serviços de transporte externo dos rejeitos pré-tratados ou in-natura até a unidade de tratamento e disposição final. Os rejeitos devem ser manejados de acordo com as exigências das empresas de tratamento externo e observando os decretos e regulamentos do Ministério dos Transportes que definem os cuidados, a sinalização de risco, a rotulagem e o tipo, tamanho e forma das embalagens apropriadas para transporte de carga perigosa;
i) contratar os serviços externos de tratamento e disposição final. O tratamento térmico, em incineradores e fornos de clínquer, e a disposição final em aterros classe I são os métodos normalmente aplicados aos rejeitos perigosos de laboratórios.
Para catalisar a implementação de um programa de gestão coloca-se como condição fundamental o apoio de organismos governamentais, no sentido de induzir nas esferas federal, estadual e municipal, políticas, planos de ação e regulamentação específica que facilitem a gestão de substâncias químicas e materiais residuais perigosos em instituições de ensino e de pesquisa.
Fonte: CRQ-MG