Um estudo realizado na Universidade de São Paulo (USP) e divulgado na revista PLoS One mostrou que a prática de exercícios físicos aeróbicos é capaz de interromper o processo degenerativo observado na insuficiência cardíaca, doença caracterizada pela incapacidade do coração de bombear sangue adequadamente.
O trabalho é a continuação de uma pesquisa anterior, na qual o grupo coordenado por Julio Cesar Batista Ferreira, do Departamento de Anatomia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, descobriu que o coração insuficiente não bate bem por causa de um defeito no sistema de controle de qualidade das células cardíacas – responsável por destruir proteínas danificadas.
Sem esse mecanismo de limpeza, proteínas altamente reativas se acumulam no citoplasma, interagem com outras estruturas e acabam causando a morte da célula cardíaca, agravando ainda mais o quadro.
No estudo anterior, os cientistas testaram em ratos uma molécula, a βIIV5-3, que foi capaz de normalizar o controle de qualidade e reverter o processo degenerativo (leia mais em agencia.fapesp.br/15571).
No experimento mais recente, também feito com ratos e com apoio da FAPESP, o treinamento aeróbico se mostrou tão eficaz quanto o tratamento farmacológico na reativação do “sistema de limpeza” celular.
“Usamos o mesmo modelo animal, que consiste em amarrar uma das artérias coronárias do rato para induzir um infarto no miocárdio. A falta de irrigação sanguínea causa a morte imediata de aproximadamente 30% das células cardíacas. Após um mês, o animal já apresenta sinais de insuficiência”, contou Ferreira.
Embora o infarto seja a principal causa de insuficiência cardíaca, explicou o pesquisador, esse processo degenerativo é o resultado final comum de diferentes doenças crônicas não tratadas, entre elas a hipertensão, o diabetes e a obesidade. O mal leva à morte 70% dos pacientes afetados nos primeiros cinco anos.
“Após o dano primário, as células restantes têm de trabalhar em dobro para compensar a lesão crônica. Como não estão preparadas para isso, acabam entrando em colapso ao longo do tempo”, disse.
Para avaliar o impacto do exercício físico aeróbico em um coração nessas condições, foi feito um experimento com 27 ratos divididos em três grupos. No primeiro, composto por dez animais, os pesquisadores induziram o infarto e os animais permaneceram sedentários. No segundo, o infarto foi induzido em oito roedores, posteriormente submetidos a um programa de corrida na esteira de uma hora diária, cinco vezes por semana, durante dois meses. O terceiro grupo, considerado o controle, não teve o infarto induzido nem praticou atividade física.
Uma série de medidas foi feita na quarta semana após o infarto para confirmar o quadro de insuficiência cardíaca. Os testes foram repetidos após as oito semanas de treinamento físico.
No grupo dos ratos corredores, a função cardíaca – que é a capacidade do coração em bombear sangue para as artérias – melhorou em torno de 70% quando comparado aos animais infartados e sedentários. A tolerância ao esforço, que corresponde à distância que os animais conseguem correr na esteira, aumentou de 280 metros para 760 metros. Já o consumo máximo de oxigênio, antes reduzido em 20%, atingiu valores equivalentes aos do grupo controle, ou seja, normalizou.
Para entender como o treinamento físico beneficiou o coração, os cientistas realizaram análises moleculares no órgão após o período experimental. “Queríamos descobrir se os exercícios também modulam o sistema de controle de qualidade de proteína e vimos que sim. Tanto quanto o tratamento farmacológico”, disse Ferreira.
De acordo com o pesquisador, um complexo intracelular conhecido como proteassoma é o principal responsável pela degradação das proteínas danificadas. No estudo anterior, o grupo constatou que no coração de portadores de insuficiência cardíaca sua atividade diminui mais de 50%.
“O exercício físico normalizou a atividade do proteassoma no coração dos ratos e, com isso, restaurou o controle de qualidade”, contou Ferreira.
O passo seguinte foi descobrir por que a atividade do proteassoma estava reduzida e como ela voltou ao normal com o treinamento físico. “Esse complexo demanda muita energia para funcionar. Como a principal produtora de energia na célula é a mitocôndria, levantamos a hipótese de que o metabolismo mitoncondrial poderia estar comprometido”, explicou o pesquisador.
Análises moleculares feitas com os corações dos animais e com cultura de células cardíacas mostraram que, de fato, a mitocôndria deixa de funcionar bem na insuficiência cardíaca.
“Ela passa a consumir menos oxigênio, a produzir menos ATP (adenosina trifosfato, molécula que armazena a energia) e a gerar espécies reativas de oxigênio e de nitrogênio em excesso”, contou Ferreira.
Esses radicais livres podem reagir com diferentes moléculas na célula e causar um colapso, afirmou o pesquisador. A oxidação dos fosfolipídeos presentes na membrana da mitocôndria, por exemplo, gera um aldeído extremamente reativo, o 4-hidroxinonenal (4-HNE), que ataca diretamente o proteassoma e inibe seu funcionamento na insuficiência cardíaca.
“O exercício físico foi capaz de restaurar o metabolismo da mitocôndria e, consequentemente, reduzir a liberação de radicais livres e seus subprodutos no coração dos animais com insuficiência cardíaca”, explicou o pesquisador.
No coração dos animais que praticaram exercício físico, os níveis de 4HNE estavam menores e, consequentemente, o proteassoma sofria menor ataque do 4-HNE e funcionava melhor. “O entendimento da integração dos sistemas intracelulares é peça chave na melhor compreensão da biologia da célula cardíaca”, disse Ferreira.
Os experimentos foram realizados durante o mestrado de Juliane Cruz Campos, sob orientação de Ferreira e com Bolsa da FAPESP. O estudo contou com a colaboração dos pesquisadores Alicia Kowaltowski e Patricia Chakur Brum, da USP, além de Daria Mochly-Rosen, da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos.A molécula βIIV5-3, desenvolvida pelo grupo de Ferreira em parceria com Stanford, desativa uma proteína chamada PKCβII, que também se liga ao proteassoma e prejudica o controle de qualidade de proteínas.
Os estudos para transformar a βIIV5-3 em um medicamento continuam e, enquanto aguardam financiamento para iniciar os testes em seres humanos, os pesquisadores investigam melhor o funcionamento da molécula no organismo.
No trabalho mais recente, verificou-se que a PKCβII também é uma das responsáveis pelo mau funcionamento das mitocôndrias e, portanto, a βIIV5-3 poderia ajudar também nesse caso.
“Estamos tentando desenvolver um fármaco capaz de atuar em pontos-chave na biologia da célula cardíaca. A βIIV5-3, por exemplo, melhora o controle de qualidade de proteína e restaura o metabolismo celular. Mas não adianta restaurar o controle de qualidade se tiver pouco ATP na célula, pois o proteassoma precisa de muita energia para funcionar”, disse o pesquisador.
Para Ferreira, o exercício físico é uma terapia complementar importante. Pode ajudar a diminuir a dose do remédio e, consequentemente, seus efeitos adversos, além de melhorar a qualidade de vida.
O pesquisador ressaltou, no entanto, a importância de acompanhamento profissional durante o treinamento físico de portadores de doenças cardiovasculares. “O esforço excessivo e mal planejado pode piorar o quadro em vez de ajudar”, alertou.
Fonte: Agência FAPESP